Associado à disputa da cantora com Elis Regina por ‘Folhas secas’, o grande disco de 1973 merece ser mais conhecido por conta de músicas como ‘Canto por um novo dia’ e ‘Hora de chorar’. Capa do álbum ‘Canto por um novo dia’, de Beth Carvalho
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♪ MEMÓRIA ♫ DISCOS DE 1973 – Álbum que marcou a conversão definitiva de Beth Carvalho (5 de maio de 1946 – 30 de abril de 2019) ao samba, Canto por um novo dia completa 50 anos em 2023 sem conseguir ficar dissociado da rixa surgida entre a cantora carioca e Elis Regina (1945 – 1982) pela primazia de lançar o samba Folhas secas, obra-prima da parceria do compositor Nelson Cavaquinho (1911 – 1986) com o poeta e letrista Guilherme de Brito (1922 – 2006).
A rigor, Canto por um novo dia é álbum que merece ser ouvido e ser (mais) conhecido pela alta qualidade do repertório – característica, aliás, que ficaria impressa na discografia da cantora carioca. Só que a disputa por Folhas secas, o maior sucesso do disco, ainda reverbera 50 anos depois.
Então inédito samba que exalta a Estação Primeira de Mangueira, tradicional agremiação do Carnaval do Rio de Janeiro (RJ) também celebrada no disco com a gravação do também inédito samba Memória de um compositor (Darcy da Mangueira e Betinho, 1973), Folhas secas foi dado de fato a Beth por ninguém menos do que Nelson Cavaquinho, cujo violão personalíssimo inclusive é ouvido na gravação da música.
A questão é que Cesar Camargo Mariano – pianista a quem foi confiada a missão de fazer os arranjos do disco de Beth, de produção creditada a José Xavier – teve naturalmente acesso ao samba por ser o arranjador do álbum. Casado com Elis, de quem era produtor musical e arranjador desde 1972, Mariano fez com que Folhas secas chegasse aos ouvidos da cantora gaúcha.
Quando Roberto Menescal – então no posto de diretor artístico da Philips, gravadora de Elis – ouviu Folhas secas, a confusão foi armada. De acordo com depoimento de Menescal publicado pelo escritor e jornalista Leonardo Bruno no livro Canto de rainhas – O poder das mulheres que escreveram a história do samba (2021), foi do diretor artístico a ideia de incluir Folhas secas no álbum gravado por Elis em 1973 em iniciativa que passou por cima da ética.
Beth soube da traição a tempo de pedir à Tapecar – gravadora na qual ingressara naquele ano de 1973 para fazer o álbum de samba que não conseguira fazer na Odeon, companhia que preferira apostar em Clara Nunes (1942 – 1983) – que mandasse um single para as lojas com a gravação de Folhas secas. Só que a Philips era gravadora com mais poder de fogo e agilidade no mercado fonográfico do que a nacional Tapecar.
O registro cool de Folhas secas por Elis acabou ecoando nesse mercado, embora o tempo tenha feito justiça à gravação de Beth Carvalho, de fato e de direito a primeira desse samba antológico. Beth rompeu relações com Cesar Camargo Mariano e nunca mais falou com Elis, mas conseguiu se fazer ouvir e respeitar no mundo do samba em transição consolidada com o álbum seguinte, Pra seu governo (1974), cujo repertório gerou o sucesso 1.800 colinas (Gracia do Salgueiro, 1974).
Já Canto por um novo dia é álbum que merece ser (re)descoberto. Mesmo sem ser disco tão pé no chão como os álbuns que Beth faria na consagradora passagem pela RCA, gravadora na qual ingressou em 1976, Canto por um novo dia é manifesto de amor ao samba – amor genuíno cultivado por Beth após incursão efêmera pelo universo da Bossa Nova e por marcante passagem da cantora pela plataformas do festivais dos anos 1960.
Os dois belos e já esquecidos sambas alocados na abertura do disco e na segunda faixa, Hora de chorar (Mano Décio da Viola e Jorge Pessanha, 1973) e Canto por um novo dia (Garoto da Portela, 1973), já valeriam o álbum por si só.
A presença de Cesar Camargo Mariano como arranjador e pianista é notada sobretudo na embalagem cool de Se é pecado sambar (Manoel Santana, 1955), boa lembrança do repertório da cantora Marlene (1922 – 2014).
Samba de título autoexplicativo, composto pelo portelense Carlos Elias, Homenagem a Nelson Cavaquinho (1973) antecede a curiosa a abordagem do frevo-canção Evocação nº 1 (Nelson Ferreira, 1957) em serelepe andamento de samba-choro em gravação que remete ao registro feito por Waldir Azevedo (1923 – 1980).
Entre a melancolia de Velhice da porta-bandeira (Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, 1973) e a exaltação de Clementina de Jesus (Gisa Nogueira, 1973), Beth Carvalho realça o dengo de Salve a preguiça, meu pai (1973) – samba então inédito do ator e compositor Mário Lago (1911 – 2002) – e dá voz ao então ainda pouco conhecido João Nogueira (1941 – 2000), compositor de Mariana da gente (1973), tristonho samba-canção de peso potencializado pelas cordas excessivas do arranjo orquestral.
No álbum Canto por um novo dia, Beth Carvalho lapida joia do cancioneiro de Martinho da Vila, Fim de reinado (1969), samba majestoso lançado quatro anos na voz do cantor Roberto Silva (1920 – 2012).
No fim do disco, gravado com os toques de músicos virtuosos como o baixista Luizão Maia (1949 – 2005) e o violonista Horondino José da Silva (1918 – 2006), o Dino Sete Cordas, a artista entra na roda do samba da Bahia – antecipando em 34 anos o mergulho mais fundo dado no álbum Beth Carvalho canta o samba da Bahia (2007) – com medley em que o partido alto Flor de laranjeira (Zé Pretinho, Bernardino Silva e Umberto de Carvalho), 1973 floresce ao lado de Sereia (tema de domínio público) e de Seu Jorge, meu protetor (Nelson Cavaquinho, Jorge Silva e Noel Silva, 1973).
Excelente cartão-de-visita de Beth Carvalho para quem ainda não a via como sambista, o álbum Canto por um novo dia faz 50 anos com frescor pela beleza atemporal de repertório que transcende rixas e que merece ser descoberto por cantoras em busca de sambas que irão soar como novos.
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