Voz do Quarteto em CY por 54 anos, Sonya expia em álbum solo a saudade boa de um Brasil mais amigo da MPB


Capa do álbum ‘Da saudade boa’, de Sonya
Marcelo Castello Branco com arte de Luciane Nardi
♫ OPINIÃO SOBRE DISCO
Título: Da saudade boa
Artista: Sonya
Cotação: ★ ★ ★ 1/2
♬ Quando Sonia Ferreira gravou o álbum solo Da saudade boa, entre 2019 e 2020, a cantora carioca contou com as presenças de Bebeto Castilho (1939 – 2023), João Donato (1934 – 2023) e Osmar Milito (1941 – 2024).
Quando a artista enfim lançou o disco na última sexta-feira, 21 de fevereiro, assinando como Sonya na capa evocativa da marcante arte visual criada por Cesar G. Villela (1930 – 2020) para os discos editados pela gravadora Elenco nos anos 1960, Castilho, Donato e Milito já estão fora de cena, potencializando o sentimento de saudade que pauta o repertório escolhido com base nas memórias afetivas da cantora.
Sem amargura, o álbum Da saudade boa exprime um sentimento de nostalgia e gratidão de um Brasil mais amigo dos músicos e da MPB. Ao longo de 13 faixas, Sonya a canta a saudade da parte boa do país, a saudade de amigos e tempos já idos.
Em cena desde 1965, ano em que formou o grupo carioca Mensagem com Luiz Carlos Sá e Sidney Miller (1945 – 1980), Sonia Maria Romaguera Ferreira foi uma das vozes do Quarteto em Cy por 54 anos. Entre 1968 e 2022, ano do qual se desligou voluntariamente do grupo, Sonia Ferreira cantou com o quarteto o Brasil que reverbera no álbum solo Da saudade boa, disco formatado com refinados arranjos do violonista Luiz Claudio Ramos, maestro de Chico Buarque.
Raro, o canto de Ramos – ouvido ao longo dos quatro minutos da gravação de Outra noite (1993), parceria do arranjador com Chico – é uma das surpresas do disco. Menos raro, mas também bissexto, o canto de Bebeto Castilho valoriza a lembrança do samba Você vai ver (Antonio Carlos Jobim, 1980).
Em clima de gafieira, o balanço do samba introduz o disco com Abertura dos portos, música inédita de Zé da Lata e Espigão, gravado por Sonya com Zé. Abertura dos portos celebra o Brasil que, “se escorregou, não caiu / Nem cairá jamais”, com arranjo que ao fim esboça evocação da célebre aquarela nacional do compositor Ary Barroso (1903 – 1964).
Na sequência, a harmonização do piano de Cristovão Bastos com o violoncelo de Hugo Pilger e a harmônica de Gabriel Grossi sublinha o lirismo da música francesa La valse des lilas (Michel Legrand e Eddie Barclay, 1964), ouvida na versão em português escrita por Ronaldo Bastos e intitulada A minha fantasia.
Cabe aqui ressaltar o apuro instrumental do álbum Da saudade boa, perceptível tanto nas cordas que envolvem a gravação da canção norte-americana Someone to watch over me (George Gershwin e Ira Gershwin, 1926) quanto no sopro do trombone com que Rafael Rocha sublinha e areja Samba da Aurora (Luiz Carlos Sá, 1965), lançado há 60 anos na voz de Luhli (1945 – 2018) no primeiro álbum solo dessa cantora e compositora projetada nos anos 1970 em dupla com Lucina.
Samba da Aurora é sagaz sacação na seleção de repertório afinado com a história de Sonya na música brasileira. Não é por acaso que a artista regrava Meu violão (1967), samba de Sidney Miller – companheiro dos primórdios da carreira de Sonya – lançado nas vozes do MPB4, grupo contemporâneo do Quarteto em Cy. O toque meio chorão meio seresteiro do violão de Luiz Claudio Ramos abrilhanta a gravação.
Por falar em MPB4, a inédita e reflexiva música-título Da saudade boa é tema da lavra de dois integrantes da formação clássica do grupo, Magro Waghabi (1943 – 2012) e Miltinho, cantor que divide a interpretação da faixa com Sonya em cadência que vai se tornando marcial.
Mesmo sem ser cantora imponente do tipo que arrebata corações, Sonya se mostra intérprete extremamente afinada com o tom e as emoções de canções como Vida de artista (Sueli Costa e Abel Silva, 1978) e Dois tons (Célia Vaz e Fernando Leporace). Uma das quatro composições inéditas do disco, o samba-canção Dois tons celebra e cita a soberania da música de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994).
Já o samba Gaiolas abertas (1982), parceria de João Donato com Martinho da Viola, voa no arranjo e no toque tropical dos dois pianos de Donato. Outro samba, Doce rotina, tem o toque jazzy do piano de Gilson Peranzzetta, parceiro de Ivan Lins e Nelson Wellington nessa música que completa o lote de inéditas do álbum, fechado com mais um samba, Ao amigo Tom (Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle e Osmar Milito, 1971), cantado por Sonya com as vozes do Quarteto do Rio, grupo descendente do histórico grupo Os Cariocas.
Editado também em CD, o álbum Da saudade boa é mosaico de referências afetivas de Sonya, cantora que faz parte há 60 anos da história de uma música brasileira de qualidade excepcional que, embora resista em nichos mercadológicos, hoje parece viver mais na memória e na nostalgia de quem viveu o Brasil amigo da MPB.
Sonya em imagem do encarte da edição em CD do álbum ‘Da saudade boa’
Marcelo Castello Branco / Reprodução

Adicionar aos favoritos o Link permanente.