Rita Lee narra com vivacidade e sem melodrama os dias de luta contra o câncer em ‘Outra autobiografia’


Escrito com sagacidade, o livro traz o relato nu e cru da artista sobre dores e descobertas no processo de enfrentamento da doença que a mataria em 8 de maio. Capa do livro ‘Outra autobiografia’, de Rita Lee
Guilherme Samora
Resenha de livro
Título: Rita Lee – Outra autobiografia
Autoria: Rita Lee
Edição: Globo Livros
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ “Sempre achei que biografia fosse coisa de gente morta”, confessa Rita Lee Jones (31 de dezembro de 1947 – 8 de maio de 2023) no início da breve introdução de Outra autobiografia, livro lançado ontem, 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, como era da vontade de Santa Rita de Sampa.
O fato é que Rita Lee escapa com vida das 180 páginas de Outra autobiografia, livro que dá sequência ao best-seller de 2016 em que a cantora, compositora e instrumentista paulista narrou a vida até a aposentadoria dos palcos, decretada em 2012. Inexiste qualquer dose de autopiedade, melodrama ou de sentimentalismo no relato nu e cru da via-crúcis enfrentada pela artista desde que recebeu em 9 de abril de 2021, aos 73 anos e 37 quilos, o diagnóstico de câncer por conta de tumor de 20 cms de perímetro alojado no pulmão esquerdo.
Rita jamais se faz de santa ao fazer com sagacidade a crônica da morte anunciada pelos médicos (de acordo com entrevista de Roberto de Carvalho ao programa Fantástico, um dia após o enterro da artista, o prognóstico de Rita era de mais alguns meses de vida no momento do diagnóstico). Embora defenda no livro a prática da eutanásia diante do sofrimento inútil, Rita decidiu encarar a morte de frente, para dignificar a vida e honrar o amor e a dedicação do companheiro Roberto de Carvalho e dos três filhos em todo o processo de enfrentamento do câncer.
Estão lá nas páginas de Outra autobiografia os momentos de desânimo, as crises de pânico que assustaram médicos e enfermeiros e o horror diante do espelho ao se ver careca (“Quando me olho no espelho, estou mais morta do que viva” e “Outro dia, fui tomar banho e me deparei comigo pelada no espelho e enxerguei uma franga depenada /… / Uma galinha velha que nem bom caldo daria”), mas também a aceitação da doença.
“Na verdade, não posso nem me queixar do câncer. No fundo do meu ser, agradeço as lições das dimensões de Luz e tento entender os porquês que estão ao meu redor”, revela Rita na página 118 de Outra autobiografia.
Sim, Rita Lee fala muito em luz ao longo do livro. A espiritualidade e a crença da vida em outra dimensão aparecem em doses regulares na segunda autobiografia dessa artista que sempre acreditou em discos voadores. “Dia seguinte da quimio, o corpo todo fica dolorido, tipo se eu tivesse lutado com Mike Tyson. A dor em si não é lá essas coisas, mas parece que meus músculos puxaram ferro, De repente, então, bate um segundo de felicidade de estar viva e esqueço que estou doente. É um jorro de luz que me envolve por segundos. Sinto não estar só e, com rabo de olho, dá para perceber a presença, mesmo que invisível, da turma da Luz”, relata Rita na página 98.
Contudo, o livro passa longe da narrativa de autoajuda espiritual ou terapêutica. Ao longo das páginas, entre descrições de grandes temores/tumores e pequenos prazeres na (possível) rotina diária na casa alojada no meio do mato e dividida com Roberto de Carvalho, o filho João Lee e as enfermeiras (com loas tecidas à enfermeira A), Rita defende o direito à morte digna, prega amor aos bichos, propaga o uso medicinal da maconha e condena a política de saúde do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro na condução da pandemia de covid-19, mas jamais dá lição de moral ou tenta fazer a cabeça do leitor.
A escrita da artista tem verve, é espirituosa e repleta de referências a filmes, desenhos, personagens de TV e outros signos do universo pop. Se o maior tumor cancerígeno reincidente foi apelidado de Jair, a máscara usada no rosto nas primeiras sessões de radioterapia passou a se chamar Leonor.
Entre relatos da vida adaptada ao combate da doença, o que gerou a necessidade de locomoção em cadeira de rodas e o uso de fraldas geriátricas (“la crème de la crème da humilhação”), Rita detalha a gênese da música Change (2021) – parceria com Roberto de Carvalho lançada em single há dois anos no que foi o último lançamento fonográfico da cantora em vida – e revive o impacto sofrido com as notícias das mortes de Elza Soares (1930 – 2022) e Gal Costa (1945 – 2022) no ano passado, discorrendo brevemente sobre as relações com as duas cantoras e publicando no livro a inédita letra de Rainha africana, música que fez com Roberto para o álbum de Elza que será lançado postumamente em 23 de junho.
Sem mascarar os momentos de inquietação (“Às vezes batia certo desespero quando me via dependente de outras pessoas para fazer coisas que ia ao banheiro ou descer escada”), Rita escreve com naturalidade e com a leveza possível sobre temas habitualmente pesados como a morte.
“Pra quê fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela (a morte) com humor? Desta vida não escaparemos com vida”, sentencia na página 71
Outra autobiografia chega ao mundo com Rita Lee Jones já em outra dimensão. Mas, cabe repetir, das páginas sinceras deste livro, instantâneo best-seller sobre os dias de luta da diva contra o câncer, Rita Lee escapa com vida porque o relato vem se somar ao inexorável legado artístico de uma mulher que abriu alas na cultura do Brasil por ter cantado, falado e escrito o que pensava.

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