O célebre escritor israelense Etgar Keret conversou com a BBC sobre os paradoxos que caracterizam a vida israelense. “Israel é como uma pizza de pepperoni com abacaxi, uma mistura que não é normal, mas quando funciona, há algo muito bonito e rico nela.”
Descrever Israel, cuja proclamação como Estado moderno completa 75 anos, não é fácil, como bem sabe o escritor Etgar Keret, autor da metáfora acima.
Vários mundos paralelos coexistem dentro de Israel em um equilíbrio instável, o que confere ao país uma enorme riqueza cultural, mas também faz dele uma bomba-relógio.
O paradoxo israelense pode ser observado em uma noite de sexta-feira, quando na moderna Tel Aviv muitos jovens se preparam para cair na balada nas boates do Boulevard Rothschild, enquanto em Bnei Brak, a cerca de 4 quilômetros de distância, os ultraortodoxos se certificam de acender as velas antes do sabbat começar, já que, segundo a tradição judaica, após o anoitecer deste dia de descanso, o fogo (ou sua variante moderna, a eletricidade) não pode ser aceso.
Eles tampouco podem, por exemplo, tomar banho quente ou usar pasta de dente, embora possam usar fio dental (mas não cortá-lo).
Um país que se encontra, segundo o escritor, num ponto de inflexão e cuja sociedade trava uma batalha interna entre as suas duas essências, a liberal e a religiosa, algo que existe desde o seu nascimento, mas que se agravou desde a chegada ao governo de uma coalizão de extrema direita e ultraortodoxos.
Como tantos outros intelectuais, Etgar Keret, autor de obras como De repente, uma batida na porta ou Sete anos bons, participou das grandes manifestações ocorridas nos últimos meses nas principais cidades israelenses em defesa de uma democracia que consideram estar em perigo. Uma crise política que se transformou em uma batalha pela identidade do país.
Keret, um artista versátil conhecido principalmente por suas antologias de contos salpicados de ironia fina, mas que também é autor de histórias em quadrinhos, livros infantis e roteiros para cinema e televisão, conversou com a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, de sua casa em Tel Aviv.
BBC News Mundo – Como você definiria a sociedade israelense hoje, se é possível defini-la?
Etgar Keret – Vou tentar dar alguns exemplos de como Israel é especial. Quando vou para o exterior, digo às pessoas que muitas vezes, quando alguém escreve um bom livro de ficção científica, na sequência se faz o filme. Mas, no caso de Israel, havia um livro de ficção científica ruim, e eles criaram um país a partir dele. A ideia do estado judeu surgiu de um livro de ficção especulativa de Theodor Herzl chamado Altneuland: A Nova Terra Velha.
Supostamente, Israel é um estado judeu liberal. Mas isso é um paradoxo, um oxímoro, que, por um lado, faz com que tenha muitas qualidades únicas, mas, por outro, é um pouco como se você estivesse andando o tempo todo sobre um abismo, na corda bamba de um circo.
Para que você entenda a natureza intrínseca deste país: Israel é um país onde, quando tivemos que enviar alguém para nos representar no Eurovision, enviamos uma mulher transgênero, Dana International, e ela ganhou. Mas, ao mesmo tempo, somos um país tão religioso que não permitimos o transporte público no sabbat (o dia de descanso no judaísmo).
No entanto, acredito que agora em Israel essa brecha realmente se transformou em uma loucura, uma batalha interna na sociedade israelense para decidir se o país deveria ser liberal primeiro e depois judeu, ou judeu primeiro e depois liberal. Qual é a hierarquia?
Claro que para as pessoas que estão do lado mais religioso e tradicional, o liberalismo não é tão importante, pois tudo o que elas precisam já está escrito na Bíblia, é o manual delas.
Mas nós que fomos às ruas protestar, a parte liberal, acreditamos que, antes de tudo, todos são seres humanos, somos todos iguais, todos queremos a mesma liberdade e, depois disso, somos judeus. Esta é a ordem em que vemos.
BBC News Mundo – Como você acha que o país mudou desde que você era criança?
Keret – Bem, em primeiro lugar, quando eu era criança, cresci em um estado socialista. Agora vivo em um megacapitalista. Então, quando penso na minha juventude comparada à do meu filho… A primeira pessoa sem-teto que vi foi quando eu tinha, se não me engano, 17 anos, e foi na França. Agora tenho que pular sobre os sem-teto a caminho do supermercado.
Existe um ditado hebraico que diz que todos, no povo de Israel, estamos comprometidos uns com os outros. Então, na minha infância, se chegava um imigrante novo ou uma pessoa nova no bairro, nos primeiros dias a gente cumprimentava, convidava para beber, comer…
Hoje em dia, o mais provável é que você encontre um bilhete dizendo que “se você estacionar seu carro aqui, iremos processá-lo”.
Essa ideia de comunidade comprometida sob a ideia de que este é um refúgio seguro para judeus de todo o mundo realmente não funciona mais.
Meu sogro, Yehonatan Geffen, que foi um dos mais importantes poetas israelenses das últimas décadas, faleceu recentemente, e quando escrevi sua elegia (lamento de morte), os extremistas me disseram: “Esperamos que você se junte a ele logo e morra também”. É puro ódio sem rosto, esse é o tipo de diálogo que o governo incentiva hoje.
BBC News Mundo – E que ideia une os israelenses hoje?
Keret – A primeira coisa que me vem à mente é um interesse mútuo em sobreviver em uma vizinhança que é muito hostil. Nenhum de nós quer ser conquistado e morrer. Não queremos ser bombardeados pelos iranianos.
Mas assim que você se afasta um pouco mais dali, tudo é visto a partir de narrativas bem diferentes.
E o absurdo disso tudo é que o governo que temos agora é muito de direita, muito agressivo, quer enfrentar todo mundo. Mas a maioria dos que votam neles são ortodoxos e ultraortodoxos que não servem o Exército (a lei permite que eles não prestem o serviço militar obrigatório).
Eles são agressivos, mas querem que eu e meu filho lutemos por eles.
Um estudo econômico recente dividiu o país em dois grupos, os que querem que Israel se torne menos democrático e os que protestam contra isso. E esse segundo grupo acaba sendo responsável basicamente por 90% do dinheiro que se ganha em Israel, enquanto a outra metade, por apenas 10%.
Então você tem metade do país que trabalha, luta e protege, e a outra metade que diz que somos terroristas anarquistas cretinos e é uma pena que os nazistas não nos mataram.
BBC News Mundo – Visto de fora, Israel parece ser formado por mundos diferentes que mal se tocam, com aspirações muito distintas para o presente e para o futuro. O ex-presidente Reuven Rivlin os chamou de “quatro tribos de Israel”: os seculares, os ultraortodoxos ou haredi, os nacionalistas religiosos e os árabes israelenses.
Keret – Meus pais, que já morreram, eram ambos sobreviventes do Holocausto e ambos eram de direita. Meu pai nunca votou em Benjamin Netanyahu (o atual primeiro-ministro e presidente do partido Likud) porque não confiava nele, mas ambos eram membros da (organização paramilitar sionista) Irgun, o grupo clandestino que lutou contra os britânicos. Então meu pai era basicamente uma pessoa do Likud, e minha mãe o apoiava.
Meu irmão é antissionista de extrema esquerda. Minha irmã é ultraortodoxa. Ela tem onze filhos e mais de 50 netos. E seus netos nem sequer falam hebraico, só falam iídiche. Eles moram em Mea Shearim, um bairro de Jerusalém muito, muito rígido, no estilo dos Amish. E todos nós vivemos juntos sem problemas.
Meu pai sempre dizia que opinião nada mais é do que um plano, e que temos planos diferentes, mas o mesmo propósito: queremos que a vida seja melhor, não queremos que ninguém inocente sofra. Podemos discutir sobre estratégia ou tática, mas temos o mesmo objetivo.
Então, acho que o problema não é que as pessoas tenham ideias diferentes — mas, sim, que vivemos em uma era de facções, e quando essa falta de tolerância diante de qualquer ambiguidade encontra a complexidade deste país, acho que termina em destruição.
BBC News Mundo – Essa mistura, no entanto, faz com que a sociedade israelense seja dinâmica, o que se reflete na literatura, no cinema ou no sucesso de séries como Fauda, na Netflix, ou de autores como Yuval Noah Harari.
Keret – Quando você mora em um lugar que está em constante conflito, acho que sua vida assume um aspecto um tanto existencial.
Uma vez, Diego Luna fez uma leitura dos meus contos para a Feira do Livro de Guadalajara. Quando nos conhecemos, eu disse a ele que não entendia por que, fora de Israel, o país do mundo no qual eu talvez tenha feito mais sucesso é o México.
E ele me disse que nunca tinha estado em Israel mas, lendo meu livro, a ideia que ele tinha era de um lugar onde as pessoas são muito felizes, e insistem em ser felizes mesmo que tenham uma vida ferrada, e para quem, se você oferecer a eles um pouco de otimismo, vão ser seus amigos para sempre, mas se você os forçar a encarar suas vidas, eles vão ficar tão frustrados que vão te matar.
E ele me disse: “Isso é muito parecido com o México. Pessoas otimistas que vivem uma vida difícil, mas não querem que os outros as lembrem de que sua vida é ruim”.
Então eu acho que há algo nesse tipo de tensão entre a dureza da vida, a busca por significado, de se sentir privilegiado e desafiado, que gera muitas histórias, e isso faz dele um terreno muito interessante (para a arte), que lida com conflitos, confrontos e tensões.
BBC News Mundo – Há alguns anos, você disse que seu filho nunca havia conhecido um palestino, enquanto, quando você era pequeno, esse relacionamento era cotidiano. Como mudou a relação com os palestinos?
Keret – Ironicamente, o que realmente fez com que palestinos e israelenses deixassem de se reunir foram, de uma maneira estranha, os acordos de Oslo. Porque no momento em que houve uma separação entre os territórios, a movimentação entre eles ficou menos informal.
Quando eu era criança, os palestinos trabalhavam aqui o tempo todo porque não havia separação, então vivíamos todos juntos. Meu pai poderia andar na rua e ver dois palestinos trabalhando em um jardim e perguntar a eles: “Vocês são bons com madeira? Eu quero construir algo, posso pagar tanto, vocês estão interessados?”
Era tudo muito natural. Agora não é assim, é muito separado, até os palestinos que vêm aqui para trabalhar, já que está tudo regulamentado, vão para o local de trabalho e depois voltam, não é como antigamente.
Agora, na era do Facebook, acho que o israelense comum tem muito mais medo dos palestinos, e eu diria que o palestino comum sente muito mais ódio.
BBC News Mundo – Isso torna essa geração mais jovem mais propensa à propaganda extremista?
Keret – Completamente. Acho que vivemos numa época, e sinto isso como artista e como escritor, em que as pessoas não sabem lidar com a ambiguidade e a opacidade. Tudo é como no Facebook, precisam se posicionar em “curto” isso e “não curto” isso, não conseguem dizer “vou pensar sobre isso depois” ou “isso é confuso”.
O milagre deste país é que ele foi capaz de operar dentro de um oxímoro, mas isso está sendo desafiado por essa forma de pensar reducionista, e esse embate pode acabar explodindo na nossa cara.
Em uma de suas histórias, um taxista diz a você que sente saudade dos velhos tempos, em que havia guerras “de verdade”, não como os conflitos que Israel vive hoje.
Claro. Cresci em um país cercado por países inimigos, que eram Egito, Síria, Jordânia, Líbano… eles nos atacavam ou ameaçavam de todas as direções. Agora temos um acordo de paz com o Egito, temos um acordo de paz com a Jordânia, que maltratamos terrivelmente, Líbano e Síria tiveram guerras civis que os afundaram, e nossa grande ameaça vem do Irã, que nem sequer é um país árabe, e não é um país vizinho.
Então éramos um pequeno estado frágil cercado por esses gigantes.
Israel é agora, de qualquer ângulo que você olhe, a maior e mais forte potência do Oriente Médio, somos o país mais tecnológico, com a melhor Força Aérea, mas enfrentamos, na maioria das vezes, palestinos que vêm com facas e pistolas improvisadas.
Antes, éramos Davi — e agora somos uma espécie de Golias.
Quando você luta contra muitos para manter seu país de pé, é diferente de quando você para uma mulher grávida em um posto de controle e não a deixa ir ao hospital porque ela não tem autorização. É muito mais difícil romantizar isso.
Então é claro que vivemos neste ciclo constante de violência e ódio, que não será resolvido, acredito eu, até que os palestinos tenham um país. Não tenho certeza se vai resolver, mas posso dizer com certeza que nunca tentamos.
BBC News Mundo – Em outra de suas histórias, você conta como, nos parques de Tel Aviv, pais jovens não só falam sobre fraldas e noites mal dormidas, como também sobre se vão para o Exército quando completarem 18 anos, o que se torna uma das questões existenciais da vida.
Keret – A ideia de ter um serviço militar obrigatório aqui é uma espécie de necessidade. É como se você vivesse em um deserto e tivesse que se revezar para tirar água do poço. Claro que é um problema, mas faz parte do nosso sistema, da mesma forma que, sei lá, colocar o cinto de segurança quando você está no carro ou o capacete quando está de bicicleta.
Mas quem comanda esse exército? O exército israelense é chamado de Forças de Defesa de Israel e, tradicionalmente, a ideia era que, se alguém nos atacasse, nos defenderíamos.
Mas com esse governo de direita, em que o Ministro da Economia faz um discurso com um mapa de Israel no qual toma uma parte da Jordânia porque, segundo a Bíblia, a Jordânia também fazia parte de Israel, você diz para si mesmo: eu quero ir para o exército para proteger o meu povo, não quero ir para o exército para manter uma espécie de fantasia racista, fascista, fundamentalista de pessoas em quem nunca votei.
BBC News Mundo – Israel é um dos países do mundo com mais empresas start-up per capita, e alguns autores atribuem isso justamente ao que a passagem obrigatória pelo exército contribui para o caráter israelense…
Keret – Bem, acho que essa ideia pertence mais ao âmbito dos livros de autoajuda.
Normalmente, as pessoas vão para o ensino médio e depois para a universidade. Aqui as pessoas fazem o ensino médio e depois passam três anos no exército, onde vivem experiências que talvez um europeu ou um latino-americano jamais teria.
E, às vezes, até praticam com equipamentos muito sofisticados que, em qualquer outro país, um jovem de 18 anos jamais teria acesso. E então, quando fazem 21 anos, vão estudar na universidade.
Para algumas pessoas, é incrível, outras sofrem, mas é um modelo único.
Mas acho que esse poderio tecnológico tem pouco a ver com o exército, e muito mais com o ethos individualista deste país.
Se eu tivesse que fazer uma comparação reducionista entre judaísmo e cristianismo, diria que o cristianismo é uma religião de submissão, ouça a Deus. O judaísmo é uma religião de controvérsia e debate, você discute com Deus. Abraão, Jó, Moisés… todos discutiam com Deus, e a forma como estudam, tradicionalmente, é em duplas, debatendo sobre um texto.
E isso realmente faz com que as pessoas deem mais importância às suas ideias e ao seu individualismo, e acho que é isso que fez com que se tornasse um berçário de start-ups.
BBC News Mundo – Você acha que o futuro de Israel se parece mais com Tel Aviv ou Bnei Brak?
Keret – Não sei qual será o futuro de Israel, e meu maior medo é que agora existem dois lados, e se um deles derrotar o outro, será uma tragédia. Porque isso significaria que metade do povo seria oprimido. Não importa em que combinação.
Em Jerusalém (onde os religiosos vêm ocupando partes cada vez maiores da cidade), havia um bom equilíbrio entre religiosos, ultraortodoxos e seculares. Mas o sistema tem dificultado muito a vida das pessoas laicas, por isso muitos seculares estão deixando Jerusalém e se mudando para outras cidades.
Jerusalém pode ser o mau exemplo do que pode acontecer com o país e, nesse caso, não haverá outra cidade para onde se mudar, as pessoas terão que sair do país.
Israel está se debatendo sobre que país quer ser, diz escritor
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