Filipe Catto reacende a chama transgressora de Gal Costa em álbum movido pela energia do rock


Capa do álbum ‘Belezas são coisas acesas por dentro’, de Filipe Catto
Juliana Rubin
Resenha de álbum
Título: Belezas são coisas acesas por dentro
Artista: Filipe Catto
Edição: Joia Moderna
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ A audição do sétimo disco de Filipe Catto – Belezas são coisas acesas por dentro, tributo a Gal Costa (26 de setembro 1945 – 9 de novembro de 2022) que chega ao mundo hoje, 26 de setembro, coincidentemente o dia do aniversário de ambas as cantoras – reitera que somente o tempo pode revelar o lado oculto das paixões como a de Catto por Gal.
Há 14 anos, ao debutar em disco com o EP Saga (2009), Catto se revelou intérprete de fôlego, vindo do sul do Brasil sem evocações das tradições musicais gaúchas. Nascida em Lajeado (RS) em 1987 e criada em Porto Alegre (RS), Catto se radicou em São Paulo (SP), cidade cosmopolita onde passou por processo de reposicionamento social, corporal e musical.
É como mulher trans não-binária que Catto se apresenta em Belezas são coisas acesas por dentro, álbum que sucede o registro do show O nascimento de vênus tour (2021) na discografia da artista. Exceto a voz quente de natureza andrógina, nada liga a cantora deste potente tributo a Gal ao projeto de galã indie esboçado pela Universal Music quando a gravadora tentou direcionar a carreira de Catto entre 2011 e 2013.
Como artista, Filipe Catto já é dona de si neste álbum gravado em estúdio pela cantora com o power trio formado por Fábio Pinczowski (guitarra e direção musical), Gabriel Mayall (baixo) e Michelle Abu (bateria).
Derivado do show que estreou em maio em unidade do Sesc de São Paulo, o disco Belezas são coisas acesas por dentro – concretizado por iniciativa do DJ Zé Pedro, arquiteto da gravadora Joia Moderna – é ponto alto na discografia de Catto e honra o legado de Gal.
Catto reacende a chama transgressora dessa matricial cantora baiana em álbum movido pela energia do indie-rock. No dia em que Gal faria 78 anos e que Catto festeja 36, o disco cruza postumamente os caminhos das cantoras, reforçando o link criado há cinco anos quanto Catto, Céu e Maria Gadú gravaram o coro da música Cuidando de longe (Marília Mendonça, Juliano Tchula, Junior Gomes e Vinicius Poeta, 2015) para o último álbum de músicas inéditas de Gal, A pele do futuro (2018).
Com título extraído de verso de Lágrimas negras (Jorge Mautner e Nelson Jacobina, 1974), música que abre o disco em atmosfera minimalista, o álbum Belezas são coisas acesas por dentro soa visceral a partir da segunda das dez faixas, Tigresa (Caetano Veloso, 1977).
Nessa música que Gal e Maria Bethânia gravaram no mesmo ano, mas que ficou de cara associada a Gal, Catto já mostra que fugiu da tentativa inevitavelmente vã de emular o registro vocal de Maria da Graça Costa Penna Burgos.
Com o D.N.A. da própria Catto, o disco tem pegada, soa sujo e está ambientado em atmosfera noise que se afina com a contracultura embutida na alma de músicas como Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971), Negro amor (It’s all over now, baby blue, Bob Dylan, 1965, em versão em português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, 1977) e Vaca profana (Caetano Veloso, 1984), além da já mencionada Tigresa.
A ambiência indie-roqueira do disco elimina o melodrama da balada Nada mais (Lately, Stevie Wonder, 1980, em versão em português de Ronaldo Bastos, 1984) ao mesmo tempo em que reforça a fé de Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi, 1972) – costurada no disco com Joia (Caetano Veloso, 1974) – e que preserva intacta a suave beleza melódica de Jabitacá (Junio Barreto, Bactéria e Lira, 2015).
Apresentada por Gal no álbum Estratosférica (2015), Jabitacá exemplifica – ao lado do rock Sem medo nem esperança (Arthur Nogueira e Antonio Cicero, 2015), outra música deste mesmo disco – o avanço da seleção de Catto além dos hits mais óbvios.
Como a cantora ressalta ao dar voz ao famoso verso da canção Esotérico (Gilberto Gil, 1976), em gravação que reitera a harmonia entre rock e melodia que rege o disco, mistério sempre há de pintar por aí.
Esse até certo ponto inesperado álbum de Filipe Catto prova a eternidade de canções lançadas por uma voz única que não passará. Em vozes como a de Catto e a da própria intérprete, a música de Gal Costa continua no ar, emocionando antigos e novos corações.

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