Da fase com Os Mutantes à parceria luminosa com Roberto de Carvalho, artista deixa obra pautada pela irreverência e inovação de ter falado de prazer quando sexo ainda era tabu na música escrita por mulheres. ♪ OBITUÁRIO – Ao fim da autobiografia best-seller que lançou em 2016, Rita Lee Jones (31 de dezembro de 1947 – 8 de maio de 2023) avaliou que tinha feito um monte de gente feliz, proeza que caracterizou como “o maior gol” da vida que se encerrou na noite de ontem, aos 75 anos.
A morte de Rita Lee somente imortaliza uma das artistas fundamentais da música brasileira, sobretudo no segmento do rock. Pode até ser óbvio rotular a cantora, compositora, instrumentista e escritora paulistana como “a rainha do rock”, mas o clichê ainda soa preciso e verdadeiro – sobretudo nessa terça-feira de cinzas em que o Brasil chora a morte da roqueira carnavalesca, a artista que mais bem personificou a rebeldia e a irreverência femininas no universo brasileiro desse tal de roque en row, território historicamente dominado pelo patriarcado.
Rita foi a roqueira ovelha negra cor de rosa choque desde que entrou em cena em 1963 como integrante do trio adolescente Teenage Singers. Foi como vocalista desse trio que Rita Lee pisou pela primeira vez em um estúdio, em 1964, para gravar vocais para álbum do cantor paulistano José Glagliard Filho (1942 – 2020), conhecido como Prini Lorez.
Contudo, Rita somente começaria a arrombar a festa em 1967 como integrante do trio tropicalista Os Mutantes, grupo paulistano que deu identidade brasileira ao rock com doses bem calculadas de psicodelia, deboche, circo e músicas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e do próprio trio formado por Rita com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias a partir da dissolução do grupo O’Seis em 1967.
De 1967 a 1972, ano em que saiu dos Mutantes em ruptura que nunca seria digerida pela cantora, Rita Lee deixou a marca da zorra tropicalista, se apresentando vestido de noiva em festival, pisando sem piedade no até então imaculado chão de estrelas da música brasileira e mostrando que rock também era coisa de menina. De menina malcomportada.
Os cinco álbuns dos Mutantes com Rita – Os Mutantes (1968), Mutantes (1969), A divina comédia ou ando meio desligado (1970), Jardim elétrico (1971) e Mutantes e seus cometas no país do baurets (1972) – são o suprassumo da discografia do grupo. São o real legado de obra que ganhou em 2000 um sexto álbum com Rita, Tecnicolor, gravado em Paris em 1970, ano em que Rita lançou o primeiro álbum solo, Build up, sem se desvincular dos Mutantes.
O segundo álbum solo da cantora, Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida, saiu em 1972, mas pode ser posto na conta dos Mutantes. Até porque é de fato um disco dos Mutantes e, se veio assinado somente por Rita, é porque o faro certeiro do executivo André Midani (1932 – 2019), homem forte da gravadora Philips, já intuía que a personalidade de Rita Lee tinha brilho suficiente para fazer da cantora a estrela solitária (mas sempre bem acompanhada) que começou a despontar no Brasil quando a cantora se afinou com o grupo Tutti Frutti já com status de protagonista.
Antes, em 1973, Rita formara com a guitarrista Lúcia Turnbull uma dupla, Cilibrinas do Éden, que misturou rock e folk em álbum psicodélico lançado somente extraoficialmente, em 2008, como bootleg disputado por colecionadores de discos.
Para o público em geral, o legado da dupla foi a música Mamãe natureza (1973), reaproveitada em Atrás do porto tem uma cidade (1974), primeiro dos quatro álbuns gravados por Rita entre 1974 e 1978 com o Tutti Frutti, grupo que uniu a verve de Rita ao virtuosismo do baixista Lee Marcucci e do guitarrista Luiz Carlini.
Do lote, a obra-prima é Fruto proibido, o disco de 1975 que apresentou ao Brasil músicas como Ovelha negra (Rita Lee), Agora só falta você (Rita Lee e Luiz Carlini), Cartão postal (Rita Lee e Paulo Coelho), Esse tal de roque enrow (Rita Lee e Paulo Coelho), Luz del Fuego (Rita Lee) e Pirataria (Rita Lee e Paulo Coelho). É um disco de rock à moda clássica, com riffs e solos de guitarras que conquistaram todo mundo, a ponto de Fruto proibido ter se tornado com o tempo um espécie de greatest hits da carreira de Rita.
Rita Lee e Roberto de Carvalho, com quem a roqueira firmou bem-sucedida parceria pop a partir de 1978
Reprodução / Instagram
Para quem cultua Rita Lee e esse tal de roque enrow, a fase com o Tutti Frutti simboliza o melhor da artista pós-Mutantes. Para a imensa multidão que Rita fez feliz, o melhor viria quando a cantora se juntou na música e na vida com o compositor e guitarrista Roberto de Carvalho, a quem foi apresentada em 1976 por Ney Matogrosso.
A primeira música assinada pelo casal em parceria, Disco voador (1978), apareceu no derradeiro álbum de Rita com o Tutti Frutti, Babilônia (1978), mas foi eclipsado pela inspiração de Miss Brasil 2000, Jardins da Babilônia e Agora é moda, três músicas compostas por Rita com Lee Marcucci para o álbum.
Foi somente a partir do álbum de 1979, Rita Lee, o primeiro da artista sem o Tutti Frutti e com Roberto, que o Brasil ficou com mania de Rita Lee. Porque era impossível resistir àquele rock pop, folião, feminino. Sim, feminino. Rita foi a primeira mulher que falou explicitamente de prazer e sexo na música brasileira. Sem medo de ser feliz.
Rita reinou e fez o Carnaval com Roberto de 1979 a 1984. Com arranjo do mago dos sintetizadores Lincoln Olivetti (1954 – 2015), a gravação de Lança perfume para o álbum Rita Lee, blockbuster de 1980, apontou o som tecnopop que daria o tom da música brasileira na década de 1980.
Rita e Roberto usaram e abusaram do pop sintetizado da época, pecando até pelo excesso no álbum Bombom (1983), mas depois de ter feito a felicidade de um monte de gente com a artilharia de hits dos álbuns Saúde (1981) e Rita Lee e Roberto de Carvalho (1982).
A ressaca da festa veio após pioneiro disco de remixes de 1984 e foi curtida ao som dark do álbum Rita e Roberto (1985), mas logo o casal 20 do pop nativo buscou retomar o espírito festivo com o álbum Flerte fatal (1987). Deu certo momentaneamente, mas, a partir do álbum Zona zen (1988) e sobretudo do anêmico disco de 1990, ficou claro que a alquimia já não era a mesma. A magia já não fazia efeito.
Rita foi então para a estrada e, com um banquinho e um violão, fez o show Bossa’n’roll – transformado em álbum ao vivo em 1991 – com a autoridade de ter gravado com João Gilberto (1931 – 2019), papa da bossa. Na sequência, ainda sem Roberto, a roqueira no fundo sempre mutante lançou em 1993 o disco solo Rita Lee, com músicas que fez sozinha, caso do sucesso Todas as mulheres do mundo, ou com novos parceiros como Mathilda Kóvak e Itamar Assumpção (1949 – 2003).
Entre registros audiovisuais de shows e irregulares álbuns de estúdio, como Santa Rita de Sampa (1997) e 3001 (2000), Rita apresentou em 2003 o último grande disco da carreira, Balacobaco, com o vigor autoral que se revelaria escasso no derradeiro álbum de estúdio, Reza (2012).
A voz de Rita Lee era pequena, mas, por aquele fio de voz, passou toda uma filosofia de vida irreverente, mordaz, por vezes ferina mesmo. Rita Lee Jones foi porta-bandeira do rock da mulher empoderada quando o adjetivo ainda inexistia no dicionário pop brasileiro. Foi a maga nativa do pop de alquimia infalível. A feiticeira que abriu caminhos para seguidoras como Pitty.
Dos vocais adolescentes do grupo feminino Teenage Singers até a última gravação com Roberto de Carvalho, Change, música composta em francês e inglês, lançada em setembro de 2021 em single produzido pelo DJ paulistano Gui Boratto para a pista pop dance, Rita Lee marcou grandes e sucessivos gols.
Madame Lee – como Rita se apresentou em programa de TV – foi a maior artilheira do rock brasileiro. Craque na vida louca vida, vivida por ela com o sabor e o preço da liberdade, Rita Lee Jones sai de campo para entrar na história.
Rita Lee, a maior artilheira do rock brasileiro, fez um monte de gol e de gente feliz com a marca da zorra
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