Jards Macalé canta o amor em álbum, ‘Coração bifurcado’, que se equilibra entre retas e curvas


Maria Bethânia e Ná Ozzetti interpretam músicas em disco que se nutre da fricção entre o violão do artista carioca e os toques de músicos paulistanos como Guilherme Held, Rodrigo Campos e Thomas Harres. Capa do álbum ‘Coração bifurcado’, de Jards Macalé
Leo Aversa com arte de Omar Salomão
Resenha de álbum
Título: Coração bifurcado
Artista: Jards Macalé
Edição: Biscoito Fino
Cotação: ★ ★ ★ ★ ½
♪ “O amor é paz, mas vai sempre à luta”, pondera o poeta e compositor letrista José Carlos Capinan em verso de Amor in natura, parceria com Jards Macalé que abre Coração bifurcado, álbum lançado por Macalé na sexta-feira, 28 de abril, a tempo de festejar os 80 anos de vida completados em 3 de março.
Amor in natura é música sinuosa, eletrificada pela levada nervosa da banda-base do disco, formada por Guilherme Held (guitarra), Pedro Dantas (baixo), Rodrigo Campos (na guitarra nesta música de abertura e no cavaquinho e nas percussões em outras faixas) e Thomas Harres (bateria), instrumentistas que assinam a produção musical do álbum orquestrado sob a direção musical do próprio Jards Macalé.
É a fricção dos toques destes grandes músicos paulistanos – arregimentados sob a direção artística de Romulo Fróes – com o violão tortuoso de Macalé que bomba o sangue que oxigena Coração bifurcado, álbum autoral de músicas inéditas que roça o alto nível do disco anterior do artista carioca com a turma de Sampa, Besta fera (2019).
Se Besta fera mostrou as garras políticas em tempo de cólera, Coração bifurcado encurrala o amor no fio da navalha que corta e faz sangrar. É na encruzilhada cruzada pelo samba-título Coração bifurcado (Jards Macalé e Kiko Dinucci) – canto para Exu cujo refrão tem os versos “um amor faz sofrer / Dois amor faz chorar” ouvidos nas vozes negras de Analimar Ventapane, Dandara Ventapane e Maíra Freitas, filhas de Martinho da Vila – que o álbum se (des)acomoda ao discorrer sobre o amor que aprisiona, mas também liberta.
Em essência, Macalé canta “A arte de viver livre / Nas grades do coração”, como ressalta ao dar a voz já grave aos versos de A arte de não morrer, outra parceria inédita com José Carlos Capinan.
Mas Macalé está bem acompanhado na arte de cantar o amor. Maria Bethânia é a solista do samba-canção Mistérios de nosso amor, segunda parceria de Macalé com Ronaldo Bastos, pontuada pelos sopros no arranjo de Cristovão Bastos.
A primeira parceria do compositor com o poeta projetado em 1972 no Clube na Esquina, O amor vem da paz (2021), é outro samba-canção, tendo sido apresentado há dois anos no álbum de Macalé com João Donato, Síntese do lance (2021), e ora rebobinado em Coração bifurcado em molde tradicional com arranjo e piano do mesmo Cristovão Bastos. São as faixas mais retas do disco.
O clima vintage de Amo tanto (Jards Macalé, 1966) – música ouvida na gravação original feita por Nara Leão (1942 – 1989) para o álbum Nara pede passagem (1966) – também prima pela retidão e se ajusta ao tom poético do álbum, mas reforça a dicotomia entre as faixas feitas com os músicos de São Paulo e as músicas gravadas em formato mais convencional.
Com inusitadas imagens poéticas, sobretudo nos versos iniciais “Olha, daqui os navios parecem formigas / Deixando a cidade, estão de partida / Seguindo faróis como grãos de açúcar, Dindi”, Grãos de açúcar (Jards Macalé e Alice Coutinho) dialoga com a Dindi (1959) de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e Aloysio de Oliveira (1914 – 1995), como a sublinhar que Jobim é a bússola, o mestre do barco dos compositores nos mares da composição.
Faixa em que Macalé recorre ao canto falado sem reproduzir a prosódia do rap, A foto do amor – parceria do carioca octogenário com o bamba paulistano Rodrigo Campos – volta a impulsionar o álbum Coração bifurcado com o oxigênio da estranheza, matéria-prima da morbeza romântica do cancioneiro de Macalé.
O ar dissonante da experimentação também bafeja Pra um novo amor chegar (Jards Macalé, Guilherme Held e Romulo Fróes). Guitarrista proeminente, Guilherme Held é o músico que acompanha Ná Ozzetti, solista que, na ausência de Gal Costa (1945 – 2022), desempenha com brilho a tarefa de dar a voz cristalina à canção Simples assim (Jards Macalé e Romulo Fróes).
Na sequência, Você vai rir (Jards Macalé e Clima) cai no samba esquema noise enquanto evolui em salão de gafieira, levada pelos sopros arranjados por Antonio Neves. Os sopros também soam proeminentes na arquitetura da faixa final, Cante (Jards Macalé), carta de princípios em que Macalé sentencia que cantar é “A melhor coisa do mundo além do amor”.
Na encruzilhada entre as tradições do samba-canção e o oxigênio modernista que lhe dá fôlego, Coração bifurcado é álbum coerente com o histórico de Jards Macalé e com o conceito do disco porque, como poetiza José Carlos Capinan em verso de Amor in natura, o amor anda tanto nas retas como nas curvas.

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