O filme de 1998 protagonizado por Jim Carrey simbolizou a era dos reality shows. E, 25 anos depois, ele continua a ressoar, escreve Emily Maskell. ‘O Show de Truman – O Show da Vida’ é estrelado por Jim Carrey
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“Bom dia! E, se por acaso não nos virmos… bom dia, boa tarde e boa noite!”
É assim que Truman Burbank, interpretado por Jim Carrey, cumprimenta alegremente o seu vizinho. A saudação é tão previsível quanto o nascer e o pôr do sol – uma parte da rotina diária e imutável de Truman.
Mal sabe ele que toda a sua vida é uma mentira acompanhada por milhões de pessoas.
Lançado em 1989, “O Show de Truman – O Show da Vida” é um filme único produzido por Hollywood – uma comédia dramática psicológica satírica de ficção científica.
Ele conta a história de um homem que vive em uma realidade artificial, inventada por produtores de TV.
O filme causou impacto no seu lançamento, mas ninguém sabia ao certo o quanto ele seria profético.
Nos anos que se seguiram, “O Show de Truman” se tornaria a incorporação de inúmeras ansiedades culturais, como a vigilância onipresente, o voyeurismo em massa e a moda dos reality shows na TV, que varreu o planeta, mostrando todos os dilemas existenciais da vida para a audiência global.
Com roteiro de Andrew Niccol e direção de Peter Weir, a receita bruta do filme atingiu mais de US$ 125 milhões (cerca de R$ 605 milhões) nos Estados Unidos e cerca de R$ 264 milhões (cerca de R$ 1,3 bilhão) em todo o mundo.
Foram três indicações para o Oscar: melhor ator coadjuvante, roteiro original e diretor. Mas os números não representam a extensão do seu impacto.
O filme é profético. Ele apresenta em detalhes o dia a dia de Truman, um pacato vendedor de seguros que desconhece totalmente o fato de que sua vida é o tema de um programa de TV eticamente questionável, transmitido para o mundo inteiro – que sua família e seus amigos são atores e o mundo à sua volta é um cenário produzido por alguém.
Escolhido para aparecer na TV desde o nascimento, a vida de Truman é documentada por cinco mil câmeras espalhadas por toda a sua “cidade-natal” na ilha de Seahaven e transmitida 24 horas por dia para uma audiência fiel de 1,5 bilhão de pessoas.
Até que, um dia, as mentiras da sua existência começaram a ruir, depois de uma série de anomalias acidentais, como um equipamento de iluminação que caiu do “céu” e a cena em que Truman encontra seu “falecido” pai vivo. Estas falhas levaram à revelação da realidade.
Com Jim Carrey, filme antecipou o que estava por vir na televisão
Alamy via BBC
Mas, enquanto Truman decide bravamente fugir da sua “realidade” construída e sair daquela manipulação, parece que nós, enquanto sociedade, tomamos coletivamente a direção contrária. As linhas de advertência do filme foram solenemente ignoradas e o voyeurismo nos meios de comunicação ganhou raízes cada vez mais profundas nas nossas vidas.
Peter Weir afirmou à BBC que, apesar da notável e oportuna relevância do filme, ele não tinha ideia de que O Show de Truman fosse tão preciso. “Eu não tinha noção do tsunami de reality shows que havia pouco além do horizonte”, ele conta.
Na época da produção do filme, os reality shows na TV estavam apenas começando. A série norte-americana “Na Real” (lançada em 1992) foi pioneira, mas o modelo holandês de Big Brother, com pessoas comuns morando por semanas em uma mesma casa, transformaria o gênero em um fenômeno mundial.
Weir relembra um comentário do criador de Big Brother, “[que estava] na fase de planejamento na época do lançamento do filme. Ele disse algo como: ‘quando vi Truman, achei que era melhor nos apressarmos.’ Big Brother foi lançado cerca de um ano depois.”
Mas a visão incisiva de “O Show de Truman” sobre a vida em vigilância constante foi um prenúncio não só da era dos reality shows na TV, mas de toda a cultura das redes sociais.
Com o lançamento de Big Brother, O Show de Truman pareceu real demais. Mas, durante a sua produção, segundo Weir, o conceito parecia um exagero para muitos dos envolvidos.
“O problema era que precisávamos aceitar que [O Show de Truman] foi acompanhado por uma audiência global por 30 anos, 24 horas por dia”, relembra ele.
Atualmente, este tipo de programação parece muito menos absurdo, graças não só ao fluxo contínuo de reality shows, mas à disponibilidade online de todo tipo de plataformas de redes sociais, onde os usuários documentam extensos períodos das suas vidas para que os espectadores possam apreciar.
O que há de real na ‘realidade’?
Weir também acertou em cheio sobre as normas da televisão “sem roteiro”, antes mesmo que existisse esta denominação.
Como ocorre com todos os bons reality shows da TV, a “realidade” de O Show de Truman, na verdade, é desenvolvida por produtores que ditam os acontecimentos no mundo restrito do protagonista.
O personagem Christof (Ed Harris), o megalomaníaco criador do programa, tem um olhar despótico que supervisiona tudo. Seu poder é ilustrado na cena em que ele manda “entrar o sol” antes da hora.
Os encontros com transeuntes e conhecidos são ensaiados detalhadamente, para que as interações de Truman com o mundo pareçam naturais.
O desejo coletivo de observar uma “realidade” mundana é descrito por Christof na abertura do filme: “nós enjoamos de ver atores nos dando emoções fingidas… em alguns aspectos, o mundo onde ele mora é simulado, mas não há nada de falso sobre o próprio Truman”.
Essa ambiguidade sobre o que é simulado e o que é “real” é fundamental para a cultura inconsistente da comunicação atual – desde séries como Keeping Up with the Kardashians até as lives do Instagram.
O público quer ver realidade, mas essa “realidade” que chega até ele pode ter autenticidade questionável, já que é adulterada pelas instruções dos produtores, inserção de produtos, filtros de redes sociais etc.
Ao mesmo tempo, os participantes dos reality shows da TV, na maioria dos casos, exibem algum nível de representação, por saberem que estão sendo seguidos por câmeras. É aqui que, naturalmente, eles são diferentes do inocente Truman do filme.
Mas, independentemente da cumplicidade ou não dos participantes, como ocorre em O Show de Truman, esses programas atendem o desejo do público de viver indiretamente a vida “real” de outras pessoas.
As imagens na caverna
A narrativa de programa de TV embutido no filme de O Show de Truman também lida com a questão existencial e epistemológica sobre o que compreendemos como “real”.
Ela relembra a alegoria da caverna de Platão – uma situação na qual pessoas acorrentadas em uma caverna por toda a vida veem sombras projetadas sobre a parede oposta. Para elas, essas imagens tornam-se “reais”, mesmo que não sejam representações precisas do mundo verdadeiro.
O Show de Truman pode ser interpretado como uma reflexão moderna desta ideia, expressa por Christof quando ele proclama: “nós aceitamos a realidade do mundo como ela se apresenta. É simples assim.”
O mesmo certamente pode ser dito sobre o público do século 21 em geral. Como Truman, nós recebemos uma realidade que, de muitas formas, pode ser compreendida como orquestrada.
As identidades online e os reality shows da TV são uma “verdade” criada com forte edição, da mesma forma que a vida de Truman é muito artificial. O mundo construído por Christof é a verdade de Truman – a caverna de Truman – e todos nós também estamos em câmaras de eco e cavernas com a nossa própria verdade.
O Show de Truman também apresenta como a vida pode ser vivida para o entretenimento dos demais. Afinal, hoje em dia, todos nós podemos nos tornar Trumans, graças ao vasto acesso às plataformas online.
O fenômeno da autodivulgação proliferou-se na nossa sociedade autodescritiva. Você pode oferecer um fluxo infinito de uma novela da própria vida para seu público online no Twitter, Instagram, Facebook, TikTok e em muitas outras plataformas.
Nós também podemos nos deixar levar pela tão ridicularizada Síndrome do Personagem Principal – uma denominação das redes sociais para as pessoas que se imaginam, narcisisticamente, como protagonistas da sua própria história de vida, com as pessoas à sua volta como personagens coadjuvantes.
“Acho que [o filme] apresenta um argumento convincente sobre essa sensação de impossibilidade cada vez maior de separar o entretenimento da realidade”, afirma a roteirista e produtora cinematográfica Lilia Pavin-Franks.
“Talvez o público tenha afinidade pelos reality shows da TV porque eles oferecem uma sensação de identificação, mas, fundamentalmente, os reality shows ainda são, antes de tudo, entretenimento”, explica ela.
Pavin-Franks destaca a relação complicada entre o espectador e os participantes, que é fundamental na história de O Show de Truman e nos reality shows da TV em geral. Como o público vê os participantes? Como pessoas que merecem empatia, como objetos manipulados para que sejam agradáveis ou ambos?
Mas esta conexão, seja qual for a sua natureza, certamente pode ser sólida. Um estudo da agência de pesquisa de mercado OnePoll, realizado em 2016, concluiu que “quase um em cada cinco entrevistados revelou ter crescido ligado a um personagem ou astro de reality show, enquanto um em cada 10 admite ter ficado obcecado por um reality show”.
Esta conclusão reflete a ideia de que os participantes são percebidos como produtos de consumo. Esta noção aparece no filme de Weir, pela forma em que o público “compra” Truman, por meio de produtos inspirados no personagem.
Mas também há algo de deslumbrante na forma em que eles assistem ao programa, no sofá, nos bares e até no banho, 24 horas por dia – uma profunda experiência coletiva.
A Síndrome de ‘O Show de Truman’
A longa ressonância cultural de O Show de Truman pode ser observada de forma muito concreta no surgimento da “Síndrome de O Show de Truman”.
Esta expressão foi criada em 2008 pelo psiquiatra Joel Gold e seu irmão acadêmico Ian Gold, para descrever pacientes que acreditam terem sido documentados para entretenimento dos demais.
Ian Gold é professor de filosofia e psiquiatria da Universidade McGill, no Canadá. Ele conta que o filme pode ter “capturado um momento importante da história da tecnologia e muitas pessoas identificaram nele suas experiências”, mas não foi a causa específica deste tipo de ilusão. Na verdade, o impacto do filme coincidiu com o aumento da vigilância na cultura ocidental.
“Depois do 11 de Setembro, a Lei Patriótica [nos Estados Unidos] fez com que a vigilância se tornasse uma característica importante da cultura americana”, explica ele, “e, provavelmente, um importante colaborador para a ansiedade geral sobre a perda da privacidade.”
Alguém poderá acreditar que o acesso generalizado aos telefones celulares e às redes sociais só aumentou ainda mais os níveis de ansiedade como a de Truman. E esta é, certamente, a convicção do professor Paolo Fusar-Poli, titular da cadeira de psiquiatria preventiva do Departamento de Estudos Psicóticos do King’s College de Londres.
Fusar-Poli é um dos autores da pesquisa sobre a Síndrome de O Show de Truman, publicada no British Journal of Psychiatry em 2008. Ele afirmou à BBC que “certamente, a recente e profunda digitalização e a hiperexposição das nossas vidas nas redes sociais pode desencadear essas experiências [como a de Truman]”.
Ian Gold acrescenta que “as realidades culturais estão sempre se infiltrando na experiência psicótica” e, portanto, a transição para uma vida altamente digital pode amplificar a paranoia relativa à vigilância.
Gold e Fusar-Poli reconhecem a importância de O Show de Truman para a identidade moderna, mas Weir também destaca que o filme aborda uma paranoia mais fundamental, independente das tendências culturais atuais. Ele revelou que, ao reunir-se com os atores que ensaiavam para o filme, diversos deles confidenciaram que se identificavam com Truman porque, na sua juventude, eles se sentiram “uma fraude, [com] todos à sua volta representando”.
Obviamente, o crescimento dos reality shows e das redes sociais consolidou o legado permanente do filme, mas Weir ainda expressa sua surpresa com a relevância “duradoura” de O Show de Truman.
“Ele parece ter apelo para o público jovem, o que é incomum para um filme mais velho do que eles”, afirma Weir.
No final de O Show de Truman, o personagem encontra uma saída em direção ao céu, por um caminho celestial que passa pela completa escuridão – o oposto da luz no fim do túnel. Mas existe um semblante de esperança na conclusão em aberto – de que Truman possa viver sua vida sem a desagradável presença do público onipresente.
Truman nos oferece um exemplo que, como indicariam algumas pessoas, seria benéfico para a sociedade como um todo se fosse finalmente adotado.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
Como ‘O Show de Truman’ previu o futuro
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