Gilberto Gil sorve a bebida amarga de ‘Cálice’ no show ‘Tempo rei’, cuja turnê chega ao Rio após a estreia na Bahia


Gilberto Gil em flagrante do ensaio do show ‘Tempo rei’, que estreia no Rio de Janeiro (RJ) neste sábado, 29 de março
Reprodução / Facebook Gilberto Gil
♫ MEMÓRIA
♪ De todas as 29 músicas do roteiro essencialmente autoral seguido por Gilberto Gil no show Tempo rei, Cálice talvez seja a mais relevante porque a parceria de Gil com Chico Buarque tem presença rara na discografia do artista baiano desde que foi composta em 1973.
Até por isso, e também por simbolizar um posicionamento político no show, Cálice tem presença emblemática na turnê que chega ao Rio de Janeiro (RJ) neste fim de semana – em apresentações agendadas para hoje, 29 de março, e amanhã na Farmasi Arena – após ter estreado em Salvador (BA) em 15 de março.
Apresentada pelos compositores no evento Phono 73, em número censurado no momento em que Chico e Gil começaram a cantar a música, Cálice é canção amarga que retrata tempos em que a ditadura tolhia a liberdade de expressão através da censura.
Censurada em 1973, Cálice foi autorizada para gravação somente em 1978. Chico Buarque registrou Cálice assim que a música foi liberada, em gravação feita com Milton Nascimento para álbum lançado por Chico naquele mesmo ano de 1978 em que Maria Bethânia também gravou a música no álbum Álibi.
Curiosamente, Gil somente gravaria a música em 2011 no álbum ao vivo de duetos Gil + 10 – Gilberto Gil convida, em gravação feita com Milton Nascimento.
Em 2017, a caixa de CDs Gilberto Gil – Anos 70 ao vivo, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Fróes com o aval do artista, chegou ao mercado fonográfico e um dos discos, Gilberto Gil ao vivo – USP [1973], apresentou o registro integral do show feito por Gil em 20 de maio de 1973, no formato de voz & violão, na Universidade de São Paulo (USP). No show, Gil cantou duas vezes a recente e então já censurada Cálice para a plateia formada por estudantes paulistanos.
♪ Recentemente, Gilberto Gil rememorou em rede social a gênese de Cálice. Com a palavra, o compositor:
“A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros (o Phono 73), e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.
“Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar.
Como era Sexta-Feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.
No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura.
Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de ideias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.
Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência.
Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.”

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