Gravação com vozes falsas de Drake e The Weeknd bombou e foi derrubada por gravadora. Podcast explica treta e possibilidades criativas da tecnologia, que pode ser ‘novo autotune’. Sobre uma batida de rap melódico, a voz aguda de The Weeknd versa sobre sua ex-namorada Selena Gomez, com insinuações de que ela o teria traído durante o relacionamento. Ele recebe o apoio de outro astro igualmente poderoso, Drake, que aparece reforçando as indiretas.
Seria o feat dos sonhos, com potencial para liderar paradas globais, mas virou um pesadelo para gigantes da indústria musical. O problema é que nem The Weeknd, nem Drake participaram da gravação da faixa “Heart on my sleeve”, postada em abril na internet por um usuário que se identifica apenas como Ghostwriter.
A música, tocada mais de 10 milhões de vezes no TikTok antes de sumir da plataforma, foi feita com inteligência artificial. A tecnologia conseguiu simular as vozes dos dois artistas, a partir de padrões identificados em outros registros vocais deles disponíveis on-line.
Não ficou perfeito, nem perto disso. A gravação tem baixa qualidade, vibração estranha e vocais com falhas. Parece uma demo pirata. Mesmo assim, ela conseguiu despertar algum sentimento especial nas pessoas: se tornou o primeiro hit viral gerado por algoritmo, o que incomodou a Universal Music, gravadora de Weeknd.
O podcast g1 Ouviu conversou com especialistas para entender como a inteligência artificial já está afetando o mercado da música e o que deve rolar no futuro. Ouça abaixo:
A música ‘Heart on my sleeve’ chegou a ser postada em plataformas de músicas, mas foi retirada após pedido da gravadora Universal Music
Reprodução/Spotify
Por pedido da Universal, a versão original de “Heart on my sleeve” foi retirada dos serviços de música. Na mesma época, a empresa mandou cartas para plataformas como Spotify e Apple Music, solicitando que faixas do seu catálogo não sejam usadas pra treinar ferramentas de inteligência artificial.
As leis atuais na maioria dos países permitem que gravadoras façam isso, segundo o advogado Luiz Fernando Plastino, especialista em propriedade intelectual, área do Direito que protege o reconhecimento de autoria.
“Todo uso que você faz de uma obra precisa ser autorizado. Isso é chamado de direito patrimonial do autor: o direito de um autor — ou do representante do autor, no caso, a gravadora — de controlar a utilização das obras dele”, explica.
Mas, se outras empresas decidirem comprar a mesma briga, casos desse tipo devem gerar debates acalorados na Justiça nos próximos anos, na opinião do advogado.
“É possível resolver os problemas com a legislação que temos hoje. A questão é que, talvez, essa legislação seja muito rigorosa contra o uso de inteligência artificial. Basicamente, a nossa lei vai proibir que muita coisa seja feita.”
Ariana Grande canta Zé Felipe
Várias ferramentas disponíveis on-line, a maioria delas gratuita, permitem reproduzir a técnica de clonagem de voz que deu origem ao hit “Heart on my sleeve”. Não à toa, no primeiro semestre de 2023, a internet foi inundada por montagens divertidas com vozes de astros em músicas que não são deles.
Tem Michael Jackson em “Evidências”, Rihanna cantando hits de Beyoncé e muitas homenagens a artistas brasileiros que já morreram. No TikTok, há hashtags específicas para esse tipo de conteúdo. Um vídeo que toca Marília Mendonça dividindo com Ana Castela os vocais do hit “Nosso quadro” tem mais de 1,3 milhão de visualizações na plataforma.
Mas, no mundo dos memes com inteligência artificial, os falsetes e modulações da voz de Ariana Grande são especialmente queridos pelos brasileiros. O estudante João Victor Xavier, de Santos, litoral de São Paulo, é um dos muitos fãs com perfis no TikTok dedicados a ela. Usando um algoritmo do aplicativo Discord, ele conseguiu fazer a artista cantar um rap de desabafo do sertanejo Zé Felipe, que bombou na internet. O vídeo chegou a quase 700 mil visualizações.
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“No grupo do Discord, você só precisa mandar um áudio com a música à capela e o robô modifica para a voz do artista que você escolher”, ensina. “Para ficar bem parecido, eu mesmo me gravo cantando a música, assim consigo imitar os trejeitos que a Ariana faz.”
Em tese, pela lei brasileira, quem usa a voz de um artista para qualquer gravação precisa de uma autorização prévia. Mas, como a voz da inteligência artificial não é exatamente a voz de uma pessoa, tudo fica meio nebuloso.
“Existe o conceito do direito de personalidade, que protege o uso da imagem e de outros atributos, incluindo a voz, contra o uso não autorizado. Por outro lado, não é exatamente a voz da pessoa, é uma imitação. Então ainda não existe uma resposta jurídica clara para isso”, diz Plastino.
Direitos para quem?
São muitas as perguntas que a Justiça ainda vai ter que responder. Mais uma: se uma música criada por algoritmo faz sucesso, com quem fica a arrecadação de direitos autorais?
Alguns países, incluindo o Brasil, atribuem direitos autorais apenas para obras que envolvem um esforço de criatividade. Um esforço humano. Nesse caso, o que é feito por inteligência artificial fica sob domínio público.
“Mas, em outros países, outras saídas estão sendo discutidas”, afirma o especialista em propriedade intelectual. “A China teve duas decisões importantes nesse sentido: em uma delas, um tipo de direito similar ao autoral foi atribuído à pessoa que operou o algoritmo e dirigiu a criação através dele; em outra, o direito foi reconhecido para a empresa que criou a ferramenta de inteligência artificial.”
O novo autotune
Fora do debate dos tribunais, artistas já pensam em explorar as possibilidades criativas desse tipo de tecnologia. O produtor Mulú, que já trabalhou com nomes como Pabllo Vittar, Luedji Luna e Duda Beat, faz uma sugestão.
“Usar a inteligência artificial para criar timbres. Por exemplo, um som de harpa que soe como um berimbau. Isso eu acho que vai ser legal, e vai desbloquear novas possibilidades, principalmente na música eletrônica.”
Imagem da ferramenta Music LM, que cria músicas a partir de descrições em texto
Divulgação/Google
Pensando nesse tipo de uso, o Google está testando a ferramenta Music LM, capaz de gerar músicas a partir de descrições leigas em texto. É possível fazer desde pedidos diretos e simples, como “um rap dos anos 90 com sample de piano de brinquedo”, até requisições mais abstratas, como “um som relaxante e inspirador, que seja como uma xícara de café musical pra te manter produtivo no trabalho”.
“O potencial disso, pra mim, é muito parecido com o do autotune”, avalia Mulú. O programa, usado por muitos cantores, é capaz de alterar a voz para corrigir falhas ou criar distorções. “Hoje, alguns estilos musicais dependem do autotune: o rap, por exemplo. Acho que, no futuro, é possível que artistas usem a inteligência artificial, aliada ao autotune, para cantarem com outras vozes.”
É artificial demais para você? Calma, nem tudo está perdido. O produtor acredita que, com o avanço da tecnologia, vai se fortalecer também o contrário: a música 100% orgânica.
“Vai ser um movimento natural. Hoje já há pessoas que fazem música 100% analógica, que não passa em nenhum momento pelo computador. Acho que vai acontecer a mesma coisa com a música orgânica. Talvez criem até um selo: música 100% feita por humanos.”
Inteligência artificial lança 1º hit e incomoda gigantes da música; quem fica com os direitos autorais?
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