Os militares José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Jacy Ochsendorf são acusados de envolvimento na morte de Paiva nas dependências do DOI-Codi no Rio de Janeiro. À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970 (à dir., cena do filme)
Arquivo Pessoal de Vera Paiva/Divulgação
No próximo domingo (2), a cerimônia do Oscar pode marcar um momento histórico para o cinema brasileiro. O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, concorre em três categorias e pode trazer ao país sua primeira estatueta dourada.
O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, resgata a história das perdas de Eunice Paiva, que teve o marido Rubens Paiva, ex-deputado sequestrado e morto durante a ditadura militar, cujo desaparecimento permanece sem responsabilização judicial até hoje.
Na última segunda-feira (24), o caso voltou a ganhar destaque, quando militantes do coletivo Levante da Juventude protestaram em frente à casa do general reformado José Antônio Nogueira Belham, na zona sul do Rio de Janeiro.
Ele é um dos acusados, que está vivo, de envolvimento na morte de Paiva, denunciado por homicídio e ocultação de cadáver, mas nunca foi julgado.
Paiva foi preso por agentes do regime em janeiro de 1971 e levado ao Destacamento de Operações de Informações do Exército, no bairro da Tijuca. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, ele morreu sob custódia militar. O reconhecimento oficial da morte só ocorreu décadas depois, com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012, para apurar crimes da ditadura.
Mesmo com as investigações, os acusados seguem sem condenação. Além de José Antônio Nogueira Belham, os militares Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Jacy Ochsendorf são acusados de envolvimento na morte de Paiva nas dependências do DOI-Codi na capital fluminense.
Porém, devido à demora no julgamento do processo, três deles já morreram.
A maior parte das informações sobre os militares denunciados se restringe a documentos até 2014, sem registros oficiais sobre o falecimento de três deles.
Veja quem são os militares acusados no caso.
Foto de Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos
Arquivo pessoal/Vera Paiva
José Antônio Nogueira Belham
O general reformado José Antônio Nogueira Belham comandou o DOI-Codi do 1º Exército entre 1970 e 1971, período marcado por intensas operações contra opositores do regime militar.
Antes disso, em 1969, ele já havia sido designado para integrar o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), órgão responsável por coordenar a repressão política.
No DOI-Codi, Belham acumulou a chefia da Seção de Operações e, posteriormente, o comando do destacamento. Suas funções incluíam a coordenação de ações externas da unidade, como capturas e interrogatórios de suspeitos. Ele frequentava o local diariamente e afirmava realizar inspeções nas celas.
Em depoimento ao Ministério Público Federal, Belham negou a existência de mortes no DOI-Codi durante seu comando. No entanto, documentos oficiais, incluindo o relatório Direito à Memória e à Verdade, contradizem essa versão. Além da morte de Rubens Paiva, o relatório cita pelo menos onze casos de desaparecimentos e execuções de dissidentes políticos no Rio de Janeiro no mesmo período.
Entre as vítimas identificadas estão Celso Gilberto de Oliveira, Antônio Joaquim de Souza Machado, Carlos Alberto Soares de Freitas, Joel Vasconcelos Santos, Maurício Guilherme da Silveira, Gerson Theodoro de Oliveira e Stuart Edgar Angel Jones. Testemunhas ouvidas pelo MPF também confirmaram a posição de comando exercida por Belham em um dos principais centros de repressão da ditadura.
Apesar das denúncias e das evidências documentais, Belham nunca foi julgado pelo desaparecimento de Rubens Paiva nem pelos demais crimes atribuídos ao DOI-Codi sob sua gestão.
Tropas e tanques protegem o Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, pouco antes do golpe de 1964
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Jurandyr Ochsendorf e Jacy Ochsendorf e Souza
Os sargentos e irmãos Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza, da brigada paraquedista do Exército, faziam parte das equipes de busca e apreensão do DOI do Rio de Janeiro na época do desaparecimento de Rubens Paiva.
Segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF), eles e o então capitão Raymundo Ronaldo Campos sustentaram por décadas a versão oficial de que Paiva teria fugido após um suposto ataque ao carro que o transportava. O MPF aponta que os militares omitiram informações sobre os responsáveis pelo crime e tinham o dever de evitar sua continuidade.
Além da ocultação do corpo, os denunciados são acusados de alterar provas para encobrir o assassinato. Entre as ações apontadas está a destruição do Volkswagen usado no transporte de Paiva, incendiado na madrugada de 22 de janeiro de 1971, e a divulgação de informações falsas para induzir as investigações ao erro.
A denúncia também inclui a participação dos militares em um esquema de repressão dentro do DOI, voltado ao sequestro de dissidentes políticos. No DOI, Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza estavam subordinados a Raymundo Ronaldo Campos e José Antonio Nogueira Belham. No Centro de Informações do Exército (CIE), respondiam a Freddie Perdigão Pereira e Rubens Paim Sampaio.
Jurandyr já faleceu, mas Jacy segue vivo. Segundo o portal da Transparência, ele recebe R$ 23.457,15 de salário bruto de aposentadoria.
Rubens Paim Sampaio
Rubens Paim Sampaio, identificado pelo codinome “Dr. Teixeira”, era major do Exército e comandava uma das equipes operacionais do CIE no Rio de Janeiro, atuando a partir do Palácio Duque de Caxias. O órgão foi um dos principais responsáveis pela repressão política durante a ditadura militar e esteve diretamente ligado a sequestros, mortes e desaparecimentos de opositores do regime entre 1969 e 1975.
Sampaio integrou um dos núcleos de inteligência do CIE entre 1970 e 1974, período em que esteve subordinado ao gabinete do ministro do Exército. Documentos do Ministério Público Federal (MPF) apontam que ele teve participação direta no esquema que levou à morte e ocultação do corpo do ex-deputado Rubens Paiva. O MPF sustenta essa acusação com base em testemunhos de ex-militares e ex-presos políticos, além de documentos oficiais.
Três ex-integrantes do DOI-Codi no Rio de Janeiro confirmaram ao MPF que o CIE usava as dependências do órgão para operações, com envolvimento de Sampaio.
Maria Helena Gomes de Souza, viúva do médico Amílcar Lobo Moreira da Silva, e a ex-presa política Cecília Coimbra também reconheceram sua atuação no DOI, associando-o a sessões de tortura. Outro depoimento relevante foi o de Iracy Pedro Interaminense Corrêa, ex-integrante do CIE, que afirmou que Sampaio comandava uma das equipes de operações do centro de inteligência.
Mesmo após décadas, sua participação na repressão ainda é alvo de questionamentos. Em 2012, uma reportagem do jornal O Globo revelou que Sampaio vivia em um bairro de classe média alta em Resende, no interior do Rio de Janeiro. Na época, sua esposa, Jeane Sampaio, disse à publicação: “Ele fez o trabalho que tinha que fazer naquela época. É passado e ficou no passado. Ele não tem nada a declarar.”
Para a Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens chegou a afirmar que “nunca houve ordem expressa para que os líderes das organizações de oposição fossem mortos.”
Afirmou ainda que não participou de execuções, torturas e interrogatórios. Por fim, disse ainda que nunca ouviu a história relatada por Paulo Malhães de que o corpo de Rubens Paiva fora retirado de uma praia do Recreio dos Bandeirantes e nada sabe dizer sobre o fato.
Soldados brasileiros patrulham as ruas de São Paulo em 3 de abril de 1964
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Raymundo Ronaldo Campos
O então capitão Raymundo Ronaldo Campos atuava no Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército como oficial de permanência da seção de operações, permanecendo no cargo por um ano e dois meses. Ele ingressou na unidade a convite do general Syseno Sarmento, um dos principais comandantes do órgão de repressão durante a ditadura militar.
Segundo denúncia do Ministério Público Federal, Campos era responsável por comandar prisões, buscas em residências consideradas “aparelhos” da resistência política e apreensão de materiais classificados como subversivos. No DOI, sua rotina incluía turnos ininterruptos de 24 horas, seguidos por dois dias de descanso.
Além dele, os sargentos Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza, ambos vindos da brigada paraquedista do Exército, integravam equipes de busca e apreensão ligadas à seção de operações do DOI no Rio de Janeiro. Os três foram acusados pelo MPF de participação na ocultação do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971.
A denúncia aponta que Campos e os sargentos sustentaram, ao longo dos anos, a versão oficial apresentada pelos militares no dia 22 de janeiro de 1971, segundo a qual Paiva teria fugido após um suposto ataque ao carro que o transportava. Para o MPF, a repetição desse relato falso e a omissão sobre os autores do crime caracterizam acobertamento doloso.
Além disso, o MPF sustentou que os acusados faziam parte de uma organização criminosa dentro do DOI, voltada à perseguição de opositores do regime por meio de sequestros e desaparecimentos forçados. Segundo a acusação, Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza estavam subordinados a Raymundo Ronaldo Campos e José Antonio Nogueira Belham no DOI, enquanto, no Centro de Informações do Exército (CIE), respondiam a Freddie Perdigão Pereira e Rubens Paim Sampaio.
Quarenta anos depois dos acontecimentos, Raymundo Ronaldo Campos admitiu que a versão oficial sobre a fuga de Rubens Paiva era uma invenção. Em 2013, em depoimento à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, ele reconheceu que o relato divulgado pelos militares na época não correspondia à realidade dos fatos. Não há informações oficiais sobre a data de sua morte.
Procurado pela reportagem, o advogado de defesa disse que, por ter exclusividade com outro veículo de comunicação, não poderia dar entrevista à BBC e nem confirmar a idade e estado de saúde dos militares que seguem vivos.
Acusados ainda podem ir para a prisão?
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a avaliar, no mês de fevereiro, ações que questionam a aplicabilidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a vítimas de perseguição política quanto aos agentes do Estado envolvidos em crimes durante a ditadura militar.
Após um longo período sem avanços, a Corte decidiu retomar o julgamento de recursos que buscam reabrir processos contra militares acusados de matar opositores ao regime, como o deputado Rubens Paiva.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a repercussão do filme contribuiu para trazer o assunto de volta ao STF e a debate o alcance da Lei da Anistia.
Além do impacto na sociedade, o debate jurídico gira em torno da possibilidade de punir crimes cometidos há mais de 50 anos e da disposição do país em enfrentar um dos períodos mais violentos de sua história recente.
Para Sérgio Suiama, do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Público Federal (MPF), a idade avançada dos acusados não impede uma eventual condenação.
“A lei brasileira não estabelece distinção em relação ao cumprimento de pena por pessoas idosas. Em caso de condenação, o regime e o local de cumprimento dependem da pena estabelecida pelo juiz na sentença”, explica.
Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, destaca que o julgamento do STF pode abrir caminho para responsabilizar torturadores do regime.
“Se os ministros decidirem que os crimes de ocultação de cadáver não são acobertados pela Lei da Anistia, isso pode levar ao processamento, julgamento e condenação de militares”, afirma.
Ele ressalta que, por serem considerados crimes contra a humanidade, essas violações são imprescritíveis.
“O Brasil já foi condenado em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, que declarou nulas as leis de autoanistia. Sem Justiça para as vítimas, suas famílias e a sociedade, não se pode falar em futuro”, conclui.
A reportagem também procurou o Exército e, por meio de nota, as Forças Armadas informaram que “não se manifestam sobre processos judiciais em andamento”.
Movimentos pedem responsabilização de militares que praticaram tortura e outros crimes
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Simbologia e importância do filme
O impacto do filme Ainda Estou Aqui sobre o caso de Rubens Paiva e sobre as investigações relacionadas aos abusos da ditadura militar foi ressaltado por especialistas que acompanham de perto a busca por justiça para as vítimas desse período.
Para Adriano Diogo, presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, a produção cinematográfica foi essencial para impulsionar o avanço das investigações.
“O filme mudou a história do país. Se não tivesse sido o filme, não haveria sido pedido pela PGR a condenação dos militares golpistas, a delação premiada do coronel Cid não teria vindo, e todos os áudios. O Brasil é um país tão cruel que precisou de um filme ficcional contando a história de uma família para mudar a realidade brasileira”, afirma Diogo.
Segundo o presidente da Comissão, o filme teve um papel determinante no desbloqueio de informações importantes sobre o caso e na abertura de arquivos que estavam mantidos sob sigilo por décadas.
Ele acredita que a narrativa que acompanha a busca pela verdade da família Paiva ajudou a trazer à tona detalhes da morte do ex-deputado, incluindo a mudança forjada do corpo, uma informação que foi esclarecida com o auxílio da Comissão da Verdade.
“Talvez o filme seja tão ou mais importante que a aprovação da Lei da Anistia. Ele trouxe à tona o real papel dos militares na história do Brasil e ajudou a revelar o impacto de suas ações não apenas no país, mas em toda a América Latina”, completa.
Aurélio Rios, subprocurador-geral da República, também afirma que o impacto do filme Ainda Estou Aqui vai muito além de uma obra cinematográfica. Ele destaca ainda que o longa fez mais pela verdade e pela memória do país do que muitas iniciativas institucionais que, segundo ele, também foram importantes, para cuidar do tema como a Comissão de Anistia, Comissão de Mortos e Desaparecidos e mesmo a Comissão Nacional da Verdade.
“O filme criou, de forma espontânea, uma conexão afetiva com a família de Rubens Paiva, especialmente com Eunice Paiva, que, por anos, lutou para obter o atestado de óbito do marido, após ele ser torturado e assassinado por agentes do Estado. Ela levou 20 anos para conseguir esse documento, enquanto o corpo de Rubens Paiva permanece desaparecido até hoje”, diz.
A importância do filme na reabertura do processo também é destacada por Suiama. Ele explica que a ação penal contra os militares responsáveis pela morte de Rubens Paiva estava paralisada desde 2014.
“É importante dizer que a ação penal do caso Rubens Paiva é uma, dentre mais de trinta ações ajuizadas pelo MPF contra agentes da ditadura militar”, diz.
A partir do filme, segundo ele, o STF decidiu analisar a Lei da Anistia e pautou três recursos com repercussão geral: o caso de Rubens Paiva, o desaparecimento de cinco pessoas no Araguaia e o desaparecimento de Mário Alves, também no Rio de Janeiro.
Ele acredita que, com a análise desses precedentes, outros casos de crimes da ditadura também poderão ser reabertos.
Quem são os acusados de matar Rubens Paiva e o que aconteceu com eles?
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