É possível criticar ‘Ainda Estou Aqui’? O que diz quem não gostou do filme


Entre as quase unânimes avaliações de espectadores e especialistas, quem critica a obra enfrenta um clima de hostilidade nas redes sociais. Fernanda Torres em cena de ‘Ainda estou aqui’
Divulgação
Do momento em que recebeu 10 minutos de aplausos no Festival de Veneza, quando estreou em 2024, até as indicações para o Oscar em 2025, o filme brasileiro “Ainda Estou Aqui” coleciona elogios e um exército estrondoso de fãs nas redes sociais.
A produção atingiu 97% de aprovação dos críticos no Rotten Tomatoes, uma plataforma que agrega avaliações da imprensa especializada. O índice alto foi atingido com a média de 156 críticas em sites de cinema em todo o mundo.
O filme dirigido por Walter Salles também registrou a mesma pontuação, de 97%, de aprovação do público.
O roteiro acompanha a história de Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, após o sequestro e assassinato do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva pela ditadura militar.
No próximo domingo (2), o longa-metragem concorre a três categorias no Oscar 2025 e pode levar estatuetas nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz com Fernanda Torres.
Mas, entre as quase unânimes avaliações de espectadores e especialistas, quem critica a obra enfrenta um clima de hostilidade nas redes sociais.
O crítico francês Jacques Mandelbaum, do jornal francês Le Monde, publicou uma resenha negativa de “Ainda Estou Aqui”, em divergência com a voz quase unânime dos críticos internacionais sobre o filme.
Na sequência, brasileiros inundaram a rede social do jornal de comentários. Em dois dias, o jornal recebeu cerca de 21,6 mil comentários de conteúdo ofensivo, principalmente no Instagram, em comparação aos 700 que a publicação costuma receber diariamente.
A BBC News Brasil pediu entrevista a Mandelbaum, que declinou o convite para comentar o tema. A reportagem apurou que o jornal orientou seus colaboradores a não comentarem publicamente para não fomentar polêmicas em torno no filme.
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‘Fui linchado e chamado de inimigo do Brasil’
No final de dezembro, o influenciador Thiago Torres, conhecido pelo canal de YouTube Chavoso da USP, foi alvo de ataques virtuais após publicar um vídeo de 20 minutos sobre “Ainda Estou Aqui”.
Na publicação, que tem quase 100 mil visualizações e mais de 2,5 mil comentários, ele faz comentários críticos ao roteiro do filme, por se centrar em uma família de classe média alta
Torres diz que a ideia do vídeo era conectar o filme, assunto que estava sendo muito falado nas redes sociais, com episódios recentes de violência policial no país.
Ele diz que queria, a partir da obra de Salles, refletir como a truculência da ditadura militar ainda permanece para a população negra e de favelas.
“Essa é uma pauta que eu sempre levantei no meu canal. Para quem me acompanha, naquele meu vídeo não teve nenhuma novidade. A única novidade foi que eu falei sobre um filme, um filme que estava tendo muita repercussão naquele momento, e que continua tendo”, diz. “Nessa intenção de juntar essas duas pautas quentes daquele momento – o filme “Ainda Estou Aqui” e a violência policial nas periferias –, eu fiz aquele vídeo.”
Vídeo de Thiago Torres sobre filme teve mais de 2,5 mil comentários
Reprodução/YouTube via BBC
Assim que subiu o vídeo na plataforma, com o título, “Ainda Estou Aqui: Por que não gostei do filme?”, Torres começou a receber centenas de comentários.
“Nos primeiros segundos da postagem, já tinha gente me xingando. Ou seja, pessoas que não assistiram ao vídeo, porque não deu tempo sequer de abrir o vídeo, já estavam ali me xingando, me atacando e me criticando pelo simples fato de eu ter dito que não gostei do filme.”
O caso tomou repercussão nas redes sociais e foi até tema de pergunta para Marcelo Rubens Paiva, autor do livro no qual o filme é baseado, em sabatina no programa Roda Viva, na TV Cultura.
“Tive que fazer mais dois vídeos comentando sobre essa repercussão que continua tendo até hoje. Toda vez que sai alguma notícia sobre o filme, alguém me marca para me xingar, para me atacar. Ou alguém faz um novo vídeo reagindo, comentando sobre o assunto.”
Para ele, o clima de hostilidade está relacionado à polarização política
“Envolve o tema sobre a ditadura militar no momento em que se descobre que teve uma tentativa de golpe militar. Então, de fato, se cria um clima de animosidade em torno desse filme, em torno dessas pautas que estão sendo abordadas”, afirma.
“Porém, eu comecei o meu vídeo ressaltando que esse é um filme importante nesse sentido. Mas, com esse clima de Copa do Mundo em torno do filme, quem não está nessa onda vai ser tratado como inimigo. Fui chamado de inimigo do Brasil.”
“Estamos falando de emoções, não de razão. E quando você critica alguma coisa que as pessoas defendem de forma inconsciente, porque aquilo mexe com paixões e desejos delas, elas não vão ter uma reação racional.”
O que diz quem critica o filme?
A reação hostil a visões críticas sobre o filme demonstra uma visão dogmática e polarizada que impede o debate, na opinião do jornalista e cinéfilo Saymon Nascimento. “Críticas não existem para que você concorde com elas, mas para abrir horizontes”, diz.
Para ele, “Ainda Estou Aqui” restringe seu olhar sobre a ditadura militar à esfera familiar e ao luto de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres. “O filme tem algum tipo de resistência a ser político de fato”, argumenta.
“O que me incomoda nem é o fato de o filme não cobrir a experiência do brasileiro como um todo, que é impossível. Mas, mesmo dentro dessa classe privilegiada que o filme cobre, são pessoas que tiveram uma vida política. E o filme decide se restringir à esfera doméstica deles.”
Nascimento cita filmes como “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977) de Hector Babenco, e “Eles Não Usam Black-tie” (1981) de Leon Hirszman, para argumentar que é possível fazer um filme político e que alcance um público amplo.
“Fazer um filme mais político não significa fazer um filme menos acessível”, diz.
Embora o sequestro e a morte de Rubens Paiva sejam retratados, sua atuação política aparece apenas de maneira indireta, e a maior parte da história se concentra na superação pessoal da protagonista, diz Nascimento.
“O filme trata o luto de forma estoica, como se essa fosse a principal história da personagem”, observa.
Na Folha de S. Paulo, o crítico Inácio Araújo fez comentários semelhantes à obra.
“Toda vez que o cinema de Walter Salles deriva para um tema ou personagem direta ou indiretamente político, sua delicadeza tende a levar esse tema para uma esfera curiosamente apolítica”, inicia seu texto.
Professora avalia que filme não explora bem a figura de Eunice
Sony Pictures Classics
“O caráter ambíguo do filme, que chama para um tema político e termina tocando um assunto familiar me parece que se deve ao temperamento delicado de seu realizador. Por mais atroz que sejam os acontecimentos que tenha em mãos, é sempre para uma suave conciliação que o filme caminha”, continua Araújo.
O crítico diz que Salles não foi infiel ao tema, não dirigiu mal seus atores ou técnicos. “Mas não se pode fugir de seu temperamento, que não parece o melhor para fazer esse tipo de filme.”
Já o crítico francês Jacques Mandelbaum, do jornal Le Monde, afirmou que a produção brasileira é tradicional e classifica como monocórdica a performance de Fernanda Torres.
Silvia Adoue, professora da Unesp, diz que a narrativa adotada em “Ainda Estou Aqui” opta por um recorte muito específico da história da ditadura militar no Brasil.
Para ela, essa abordagem limita a compreensão do período e se alinha a um relato hegemônico da ditadura, restrito à experiência da classe média intelectual que foi atingida pelo regime a partir de 1968.
“Parece que faz 40 anos que assistimos ao mesmo filme sobre a ditadura militar”, comenta Adoue. “Há um relato dominante que estabelece, para começo de conversa, que a ditadura foi um evento que começou, acabou e pronto”, diz.
“Mas não acho que tenha sido um evento que deixou apenas restos, resíduos ou marcas superficiais. Esse período estruturou o que é o Brasil hoje. Mas esses relatos são os hegemônicos porque quem formula essas narrativas são intelectuais, em sua maioria, pessoas da classe média atingidas pela ditadura a partir de maio de 1968”, afirma.
A professora ressalta que os trabalhadores e camponeses foram alvos da repressão desde 1964, mas o foco predominante da maioria dos relatos sobre a ditadura é a persecução política a militantes de esquerda ligados a partidos e universidades.
Outro ponto de atenção, para a professora, é a personagem de Eunice. “Ela é uma pessoa belíssima e sua aparição me fez pensar que o filme poderia ter explorado mais essa figura”, diz.
“Mas isso é apenas sugerido. Para quem não sabe quem foi Eunice, aquilo passa de forma muito superficial.”
O sucesso de Ainda estou aqui vai além do cinema

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