Em disco coeso, a cantora paulista aborda a obra do engajado compositor carioca com participações de Zé Renato, Zeca Baleiro, Leila Pinheiro, Preta Ferreira e Renato Braz. Capa do álbum ‘Afeto e luta – Bruna Caram canta Gonzaguinha’
Divulgação
Resenha de álbum
Título: Afeto e luta – Bruna Caram canta Gonzaguinha
Artista: Bruna Caram
Edição: Coffee Music
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ O Brasil demorou alguns anos para assimilar o cancioneiro de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (22 de setembro de 1945 – 29 de abril de 1991), relevante cantor e compositor carioca imortalizado com o nome de artístico Gonzaguinha.
Uma das vozes que se levantaram mais alto no combate da MPB à ditadura brasileira dos anos 1960 e 1970, tendo sido revelado em 1968 na era dos festivais, o artista desenvolveu a carreira na década de 1970, lançando em sequência três álbuns densos e tensos – Luiz Gonzaga Jr. (1973), Luiz Gonzaga Jr. (1974) e Plano de voo (1975) – em que jamais fugiu à luta.
A partir de 1976, ano do álbum Começaria tudo outra vez…, Gonzaguinha foi enternecendo sem perder a dureza necessária porque os dias eram assim. Foi quando as grandes cantoras do Brasil iniciaram caso de amor com a música de Gonzaguinha.
Decorridos 50 anos da edição do primeiro álbum do artista em 1973, a cantora paulista Bruna Caram entra nesse time e encara o desafio de reunir no sexto álbum dez composições de Gonzaguinha, algumas já amplificadas por interpretações de cantoras do porte de Elis Regina (1945 – 1982), Maria Bethânia, Simone e Zizi Possi.
Em rotação nos aplicativos de música desde 28 de abril, com capa que reproduz a imagem de Gonzaguinha na capa do LP Caminhos do coração (1982), o álbum Afeto e luta – Bruna Caram canta Gonzaguinha embaralha amor e política no repertório pesquisado por Jean Wyllys, político baiano que, tal como o imortal compositor carioca, também mistura dureza e ternura na caminhada.
É injusto comparar o canto de Caram com as emblemáticas vozes supracitadas como também é injusto deixar de reconhecer a beleza e importância deste disco derivado do show homônimo apresentado por Caram em 4 de dezembro de 2020 em formato de live, sem público, na era pandêmica vivida pelo povo brasileiro sob as trevas das esferas oficiais.
O álbum Afeto e luta chegou ao mundo três anos após o primeiro single, editado em 29 de abril de 2021 – dia do 30º aniversário de morte de Gonzaguinha – com a gravação da canção Redescobrir, abordada por Caram com Zé Renato, na cadência do ijexá, com a intenção de traduzir no canto tanto o tom político da letra quanto o espírito lúdico infantil do tema, “como se fora brincadeira de roda”, como sintetizado neste verso inicial da música apresentada por Elis Regina no show e disco Saudade do Brasil (1980).
Sob direção musical do violonista Norberto Vinhas, arranjador do disco, Bruna Caram se permitiu algumas ousadias estilísticas, como alterar a cadência original do samba É (1988) para seguir o passo do frevo em gravação feita com Preta Ferreira – ativista que atualiza o tema com palavras de ordem gritadas em sintonia com o espírito engajado da obra de Gonzaguinha – e turbinada com o naipe dos metais soprados por Carlos Adriano da Silva (sax alto), Gustavo Henrique de Souza (trompete), Maestro Tiquinho (trombone) e Tercio Guimarães (sax tenor).
Bruna Caram (à direita) com a ativista Preta Ferreira em estúdio na gravação da música ‘É’ para o álbum ‘Afeto e luta’
Isabelle Andrade / Divulgação
As dez músicas escolhidas por Caram com Wyllys – dentre as 294 composições registradas oficialmente por Gonzaguinha – dão amostra satisfatória da visão de compositor que pregou alegria, amor, liberdade e luta. Tudo isso junto e misturado, como mostra a letra do samba autobiográfico que abre o disco, Com a perna no mundo (1973). Como diz no samba, o menino do Morro de São Carlos, também conhecido como Moleque Gonzaguinha, tinha mesmo um impagável fogo nos olhos e no coração.
Na mesma sintonia, o pulso de Amar, viver, valeu (1982) – música envolvida por Caram na ambiência seresteira dos antigos conjuntos regionais de samba e choro, com arranjo em que sobressaem os violões de João Camarero (sete cordas) e Norberto Vinhas, além do sopro livre da flauta transversal de Maiara Moraes – também segue o caminho do coração que norteou a obra do compositor. Já o arranjo crescente de Sangrando (1980) evidencia de início a largura do baixo de Bernardo Goys na moldura acústica recorrente no álbum.
Bruna Caram escapa do cover mesmo quando encara canções já muito abordadas, caso de Não dá mais para segurar (Explode coração), ainda que essa canção política de 1978 percebida popularmente como música de amor e desejo, tenha perdido a força na interpretação da cantora. Já Belo balão (1985), grande achado do repertório, sobe alto no álbum por reanimar o espírito lúdico do menino de São Carlos que sempre habitou a alma de Gonzaguinha.
A alma desse menino também está entranhada em Sementes do amanhã (Nunca pare de sonhar) (1984), faixa em que Adriano Magoo (piano, teclados e acordeom) simula sons de caixinha de música na introdução. Leila Pinheiro recita versos da canção Eu apenas queria que você soubesse (1981) na gravação feita também com a adesão de Nanan Gonzaga, filha de Gonzaguinha, responsável pela direção de voz de Bruna Caram no disco.
Uma das músicas de arquitetura mais inventiva da obra do compositor, Eu nem ligo (1975) se alimenta do vigor da percussão de Lan Lanh em gravação de peso quase roqueiro feita por Caram com a adesão vocal de Zeca Baleiro e com Norberto Vinhas nas guitarras.
Música aberta e arrematada com citação de A vida do viajante (Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil, 1953) na voz de Renato Braz, Caminhos do coração (1982) segue firme na pisada do maracatu com Braz e Bruna Caram afinados no canto desse tema que ainda bate forte – como, aliás, toda a obra de Gonzaguinha, coisa mais maior de grande revivida por Bruna Caram no álbum mais coeso da cantora.
Capa do álbum ‘Caminhos do coração’ (1982), de Gonzaguinha (1945 – 1991), que inspirou a capa do disco de Bruna Caram
Divulgação
Bruna Caram junta amor e política ao dar a voz do coração a Gonzaguinha no álbum ‘Afeto e luta’
Adicionar aos favoritos o Link permanente.