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Maria Déa era mulher indulgente e “moderna”, como se dizia então. Nas vezes em que o comendador impunha restrições às atividades de Bentinho, sempre fora ela a defendê-lo, procurando fazer da vida do menino a mais livre e feliz. Mais do que isso, nas recepções ou idas ao teatro, insistia em chamar-lhe a atenção para o viço das raparigas.
Dizia, cobrando dele maior iniciativa: -És um guapo menino, não percas tempo. Bota nos olhos o fogo de que as meninas gostam.
Quando o comendador intervinha ressaltando ser Bentinho ainda uma criança, ela sentenciava: -A vida é curta, a vida é muito curta!, meu velho marido.
Se Bentinho vestia-se para uma ocasião especial, era ela e exigir que tudo estivesse corretíssimo: o nó da gravata, o lenço de seda no bolso, o vinco das calças, o lustro dos sapatos…
-Tenha especial atenção com os sapatos, ressaltava. Mulher sempre repara nos sapatos… E coloques sempre um cheiro atrás das orelhas e nas mãos!
E, com o olhar deixando escapar um flagrante de malícia , colocava as mãos junto às narinas antes de completar: -É bom sentir o perfume que alguém nos deixa nas mãos… Maria Déa deliciava-se em estimular e orientar seu menino na mais deliciosa das contentas, aquela que nos vai acompanhar por toda a vida.
No entanto, de uma hora para outra, como não tardaram a reparar as criadas, sua atitude mudou completamente. Antes que estimulá-lo nas suas tímidas investidas em direção ao sexo oposto, passou a ralhar e a implicar com coisas sem importância, chegando mesmo a ironizar suas parcas iniciativas. Ainda mais revelador desta nova atitude foi seu incabível desdém com o crescente interesse de Bentinho pela bela menina da casa da frente.
– Bobagem, dizia Maria Déa; cuida de teus estudos e deixa a rapariga em paz!
Mais estranho ainda: passou a controlar todos os passos do rapaz, coisa que nunca fizera. – Onde vais? Já fizestes tuas lições da escola?
Tornou-se, simultaneamente, mais irritada e exigente com as criadas, inçada de desconfianças, implicando com detalhes sem nenhuma importância, papagueando uma ladainha de reprimendas.
Dasdô esgueirava-se agora pelos cantos da casa, depois de receber uma descomunal descompostura por um colarinho de Bentinho não tão bem passado e dona Lourdes, na cozinha, sofria para agradar o apetite sempre insatisfeito da patroa, a reclamar do sal, do tempo de cozimento, do tempero das saladas, da qualidade do peixe…
Foi um longo processo, de que aqui só trato superficialmente para não enfastiar o leitor, em que se substituíram seus característicos bom humor e contagiante alegria de viver, por uma taciturna introspecção.
Às vezes, passava o dia metida em pijamas e subjugada por inusitado ronceirismo e, quando não obrigada por um compromisso incontornável, passava horas e horas trancada em seu quarto, impondo-se um ritual penitencial na recitação do confiteor.
Mais que isso, pela primeira vez, começou a tomar remédios para dormir sem, no entanto, conseguir vencer a recorrente insônia, surpreendendo o comendador com constantes ausências no leito no meio da noite, trancada a sete chaves no banheiro:
– Maria Déa, estás bem?, perguntava à porta o preocupado marido. – Estou, Álvaro, deixe-me em paz. Estou bem! Vá dormir .
Nas tardes, quando ausente o marido, vestia e desvestia as mesmas roupas, numa insatisfação sem fim com a própria aparência, terminando por deixar um ror de vestidos atirados ao chão num canto do quarto, o que obrigava Dasdô a lavar e repassar roupas que nem tinham sido usadas.
Saía pela manhã bem cedo, sozinha, e voltava carregada de sacolas cheias de bugigangas que levava diretamente ao quarto, aguçando a curiosidade das empregadas. Despendia fortunas em cremes e geleias milagrosas, com as quais untava o corpo e o rosto para, depois, meter-se, novamente, nos largos pijamas de flanela.
Num desses dias, Dasdô entrou inadvertidamente no quarto do casal para trocar a roupa de cama e tomou um susto dos infernos: deu de cara com a patroa sentada no chão, vestida de um estranho pijama rosa e pantufas, tendo o rosto empastelado por um creme negro que só deixava escapar o brancor dos dentes e dos olhos.
-Salve minha Nossa Senhora de Aparecida!, gritou a negrinha, antes de evadir-se escada abaixo como se tivesse visto alma penada.
E Maria Déa reclamava da comida, reclamava, reclamava. E devolvia tudo à cozinha… nada mais a satisfazia! E por estar assim tão inapetente, começou a perder peso a olhos vistos; vincaram-se as linhas do rosto, abateu-se o semblante, abandonou-a de vez o luminoso sorriso. Dona Lourdes, zelosa de suas obrigações e assustada com o desagrado da patroa, passou a buscar toda sorte de novidades. Ia cedo ao mercado de onde trazia peixe fresco e camarão, siris e caranguejos, mariscos e ostras, as melhores peças de bacalhau e uma profusão de temperos exóticos na tentativa de provocar o paladar da patroa. Sem sucesso. A mulher não comia e não queria comer, enfastiada de tudo.
Nos meados do terceiro mês da crise que insistia em ficar, passou a ter uma coceira que não a deixava dormir e, por consequência, também não dormia o comendador com os solavancos e esfrega-esfrega noturnos da mulher. Comichão dos infernos! Apontou-se hora no dermatologista que, depois de examinar a massiva escamação, recomendou uma bateria de exames para identificar o agente causador de tão aguda alergia… Em vão; a padecente não era alérgica a nada; a absolutamente nada!
Então, vaticinou o ínclito especialista por detrás d’um dourado pincenê: – Emocional!! É somente uma coceira de fundo emocional, sentenciou. – Mas como emocional se me coço de quase sangrar, doutor?, desesperou-se a mulher. – Apenas emocional, reiterou o médico. Algo que lhe aflige o espírito e que a senhora somatiza nesta coceira toda, repetiu-lhe o médico do alto de sua douta carranca.
A mulher não se satisfez e voltou para a casa maldizendo a empáfia do especialista. – Emocional? Emocional uma ova, leirão dos infernos!! E, num acesso de fúria, exigiu que as criadas recolhessem toda a roupa da casa: queria tudo fervido e refervido!! -Deixem ferver longamente nos caldeirões!! Longamente!!!
Encheram-se os caldeirões com peças e mais peças… lençóis, fronhas, toalhas, toalhinhas, meias, cuecas, calças e calcinhas… a desinfetar toda a sorte de intimidades. Depois, levadas ao sol para quarar, cobriu-se o gramado verde com a palheta multicor dos segredos desfraldados.
Mas Maria Déa não sossegava; pôs-se a perscrutar insondáveis bactérias, passando a cuidar pessoalmente da limpeza e desinfecção dos banheiros, coisa que nunca fizera antes. Comprou uma coleção de desinfetantes e robustos perfumantes. Esfregava o chão demoradamente, vigilante a cada detalhe, enrolando chumaços de algodão em palitos de fósforo com os quais limpava meticulosamente cada fresta dos ladrilhos como que, mais que andar, fosse comer sobre eles.
Desleixada com a própria aparência, o que era especialmente grave nela que gostava de citar Balzac dizendo que “desleixo ao vestir-se é falta moral”, passou a portar desairosos roupões de banho tendo os cabelos enrolados por esvoaçantes tiras de papel, arrastando surradas chinelas como se fora um espantalho a vagar pela casa.
Não bastassem os acessos de coceira em meio às madrugadas, teve ainda uma crise de urticária que lhe avermelhou face e pescoço, sabe-se lá se pelos gravames emocionais, como vaticinara o doutor, ou por uma reação alérgica à profusão de cremes e ungüentos que insistia em usar.
Na busca desesperada de por fim ao seu martírio e descrente do diagnóstico do especialista, passou a receber, duas vezes por semana, uma velha benzedeira, conhecida por seus milagrosos banhos de ervas medicinais. Com a velha pajé passava horas e horas reclusas em seu banheiro, metida dentro da banheira preparada com folhas, óleos e sal grosso. Em vão!
A dramática transformação de Maria Déa, que já era motivo de grande preocupação de Bentinho e das criadas, conseguiu, finalmente , sensibilizar o marido, costumeiramente distante e indiferente. Rápido emagrecimento, coceiras, crises de choro, reclusão, ausência constante à mesa nas refeições, total desinteresse por atividades sociais, cancelamento de jantares. proibição de qualquer comemoração no dia do seu aniversário…
Antes devota e engajada em atividades filantrópicas, agora parecia distante de tudo, deixando mesmo de ir à Igreja pela primeira vez em toda a sua vida, insensível ainda à sorte dos desafortunados.
Como não recebesse nenhum tipo de resposta ou explicação às suas interpelações, o marido mandou chamar o Doutor Carnevalli, velho clínico da família, aposentado há muitos anos. Depois de tomar o pulso e auscultar o peito, o médico prescreveu algumas vitaminas e ordenou repouso. – Nada de grave, disse, apenas estafa.
O comendador, desta vez, não se satisfez. Via diante dos seus olhos o definhar da mulher. Alguma coisa tinha que ser feita! Mandou então chamar padre Ovídio, pessoa por quem Maria Déa tinha grande estima. -Se a ciência não resolve, quem sabe a Igreja, filosofou.
Veio o sacerdote. Fechou-se com Álvaro longamente na biblioteca. Depois subiu o marido aos aposentos do casal, onde a mulher se encontrava trancada desde a manhã. Lá permaneceu por meia hora, enquanto o padre, pacientemente, aguardava no andar de baixo. Depois mandou chamá-lo ao quarto, deixando-o a sós com a mulher. As empregadas, reclusas na cozinha e sem acesso ao que se passava no segundo andar, enlouqueciam da curiosidade aguçada pelos semblantes carregados dos homens. -Por que o padre teria sido chamado??!!
Depois de servir um bule de café e sequilhos no quarto, Dasdô voltou à cozinha com as teses mais estapafúrdias, chegando a suspeitar que Maria Déa estivesse possuída por “alguma coisa ruim”…
-Cruz credo, menina. Te esconjuro!, reagiu Lourdes.
O pároco, depois de mais de duas horas trancado com Maria Déa, recolheu-se novamente com o comendador à privacidade do escritório. Caia já a noite quando ele finalmente partiu, e tinha ainda o semblante carregado de preocupação.
Certas ou não as suspeitas de Dasdô, o fato é que, a partir desse dia, o pároco passou a cumprir rigorosa rotina, vindo todos os dias, sempre à mesma hora, às dez da manhã. Por vezes, simplesmente trancavam-se demoradamente no quarto; noutras, conversavam longamente andando pelos jardins da casa, junto à alameda de irruvinhas.
As empregadas, em crescente bisbilhotice, espreitavam pelas frestas de portas e janelas e, por vezes, surpreendiam o padre em atitudes que pareciam ser a de um pai amoroso a repreender a filha. Por que será ?
( continua na próxima semana)
*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.
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