Em meio a revival dos anos 2000, geração Z revive aparelhos que já estavam esquecidos, chamando atenção de marcas que tentam se aproveitar do embalo. Jovens resgatam eletrônicos do passado em tendência nostálgica
Talvez você não se lembre, mas houve uma era na qual ninguém publicava fotos e vídeos com apenas um clique. Ouvir músicas dependia de um rádio, computador ou aparelhos que exigiam downloads indiretos.
Registrar imagens em alta resolução era uma tarefa restrita a pouquíssimas pessoas. E ter um telefone que oferecesse entretenimento para além de jogos era uma proeza rara — senão, impossível.
Num mundo imerso em avanços tecnológicos cada vez mais velozes, experiências como essas já são consideradas obsoletas. Nos últimos tempos, contudo, têm fascinado grande parte da geração Z, os nascidos entre 1995 e 2010.
Nesta semana, o g1 publica uma série de reportagens para explicar os novos hábitos e modinhas da geração z: dos chinelos com meias às sobrancelhas descoloridas e festas mais cautelosas.
Atraída por eletrônicos antigos, essa juventude tem resgatado itens que já estavam esquecidos no fundo da gaveta — em muitos casos, de seus pais — para enaltecê-los nas redes.
Saudades do que não vivi
Parte da segunda metade da geração Z, a influenciadora Sammy K sequer tem memórias da febre que foi a moda dos celulares dobráveis, os chamados flip phones, mas, desde o ano passado, faz de seu TikTok uma vitrine do produto, que decidiu adquirir por influência de amigas.
Num vídeo viral, com mais de 3,5 milhões de curtidas, Sammy diz que não leva mais seu smartphone para a maioria dos eventos noturnos. Em vez dele, estaria usando somente um flip phone.
O argumento da influenciadora é de que celulares contemporâneos trazem problemas como a ausência de comunicação entre amigos, postagens acidentais e arrependimento por mensagens enviadas sob efeito de embriaguez.
(E embora não estejam exclusivamente relacionados ao uso de smartphones, os dilemas citados por Sammy estão, de fato, atrelados a um bombardeio de notificações, excesso de aplicativos e, claro, vício nas redes.)
A influenciadora Sammy K
Reprodução/TikTok
Ao descrever seu uso de flip phone, ela define o aparelho como “absolutamente diferente” de tudo que já teve na vida. “É fascinante.”
Em outros vídeos, a garota também comenta limitações do dispositivo, como a incompatibilidade com aplicativos de transporte como Uber. Mas os ônus não ganham destaques em suas publicações e, quando surgem, vêm acompanhados de contrapontos.
Conhecida no TikTok como “a garota do flip phone”, Sammy não é a única que tem enaltecido o modelo. Prova disso é que diversas marcas têm lançando celulares no estilo — a influenciadora, aliás, chegou a fazer publicidades para a Nokia.
Feio é o novo bonito
Assim como Sammy K, o estudante universitário Gabriel Guerra, de 24 anos, gosta de fotos com baixa resolução. Mas, em vez de flip phones, ele tem se encantado por câmeras digitais, outro item que sua geração resolveu resgatar das cinzas.
“Acho a estética até engraçadinha. Tem algumas fotos que saem tremidas. É legal. Diferente”, diz ele, que tem um perfil no Instagram só para publicar seus registros de câmera digital.
Fotos postadas por Gabriel Guerra em seu perfil no Instagram voltado à câmera digital
Reprodução
Gabriel conta que, por ser interessado em fotografia, resolveu recuperar uma máquina de seus pais que estava largada, em casa, e desde então, passou a levá-la para “todo rolê”. O motivo do interesse, segundo ele, é praticidade.
“No celular, você recebe 20 fotos num único dia. Às vezes, esqueço de apagar e, se vou procurar alguma, tem outras centenas no meio. Com a câmera digital, subo todas [num computador] e já deixo classificado o que e quando foi.”
Ele diz que o processo de transferência das imagens da máquina para seu computador é bem mais lento do que o registro automático do celular, mas, ainda assim, é melhor para “registrar memórias”.
Dentro e fora do Brasil, a hashtag #DigitalCamera é sucesso no TikTok. São incontáveis os posts de jovens enaltecendo o embaçado da lente. E tem até vídeos ensinando como deixar um iPhone com uma estética, digamos, bagaceira.
Um play nostálgico
Há ainda outros aparatos antigos retornando à moda. O iPod, por exemplo, foi o tocador musical vintage mais buscado na OLX no primeiro trimestre deste ano. A plataforma não revela a idade de seus usuários, mas não é exagero relacionar os números ao revival tecnológico encabeçado pela geração Z.
É essa juventude, aliás, que protagonizou uma tendência, tempos atrás, na qual o iPod servia de presilha de cabelo, num visual Kidcore — movimento estético que brinca com elementos infantis e exagerados.
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Além de aparecer em vídeos do TikTok, a saudade pelo iPod levou até mesmo à criação de um aplicativo que simula sua interface.
E até o fone de fio — usado por muitas pessoas tanto por uma questão de preferência quanto de acessibilidade econômica —, voltou a ser considerado estiloso.
A última letra do alfabeto
“A geração Z é a primeira a ser uma nativa digital”, explica Daniela Penteado, gerente de desenvolvimento da WGSN, agência especializada em tendências.
Segundo ela, os jovens desse grupo vivem hoje com uma crescente dificuldade em “acompanhar a profusão constante de referências e comunidades digitais”.
Diante do excesso de informações que pipocam nas telas, existe, diz Daniela, o chamado FOLO ao quadrado, sigla para “fear of logging off” (“medo de se deslogar”) e “fear of logging on” (“medo de se logar”). É um paradoxo de querer estar conectado às redes e, ao mesmo tempo, não estar.
Para ela, o fenômeno tem feito jovens buscarem tanto relações mais saudáveis com o digital quanto uma fuga da realidade, o que levaria à chamada anemoia, a saudade do que não foi vivido. Um dos reflexos disso seria justamente o resgate de aparelhos antigos.
Vintage: do cifrão ao cérebro
Thiago Costa, professor de comunicação e marketing da FAAP, afirma que a nostalgia é um elemento que “sempre vendeu bem”. Em geral, ele diz, esse tipo de publicidade traz referências tão gostosas quanto o “aconchego de casa de vó”.
Como exemplo, o professor cita um recém-comercial da Motorola, no qual Gloria Groove canta o hit “Oops! … Did It Again”, de Britney Spears. No vídeo, a marca anuncia seu novo flip phone.
A escolha da música, claro, não é aleatória. Sucesso nos anos 2000, a faixa remete à época e acena ao Y2K, movimento cultural que faz uma enxurrada de referências ao período.
“A nostalgia é uma linha paralela de produtos. Vai pegar públicos específicos”, diz Thiago, ressaltando que a juventude é ainda mais propensa a ser fisgada pela ideia de que “o antigo é melhor”.
“É comum jovens terem uma sensação de não pertencimento. No início dos anos de 1980, por exemplo, havia uma galera que gostava de se vestir num estilo rockabilly.”
Cláudio Paixão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em psicologia social, também atrela o revival tecnológico ao que, segundo ele, é a essência juvenil de querer “se diferenciar” da multidão.
No pacote dos motivos que levaram à onda, também estaria uma característica dos nativos digitais que Cláudio chama de “humor peculiar”. Trata-se de tirar sarro do grotesco como uma forma de externalizar crises existenciais. É uma linguagem para subverter a rotina.
Câmera digital, iPod e flip phone: jovens resgatam tecnologia do passado em tendência nostálgica
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