Da ‘panela’ de Gal Costa, Adriana Calcanhotto serve iguarias em tributo para paladares refinados


Cantora gaúcha mostra os peitos em show de valor potencializado pela banda excepcional e pelo roteiro que costura com inteligência músicas de todas as fases da carreira da artista baiana. Adriana Calcanhotto canta ‘Recanto escuro’ com panela na estreia carioca do show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’ na casa Vivo Rio
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
Resenha de show
Título: Gal – Coisas sagradas permanecem
Artista: Adriana Calcanhotto
Local: Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 29 de abril de 2023
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Foi com panela colada ao ouvido direito que Adriana Calcanhotto entrou em cena no show Gal – Coisas sagradas permanecem para cantar, sob penumbra, Recanto escuro (Caetano Veloso, 2011), música que norteou álbum revigorante na discografia de Gal Costa, cantora morta em novembro e homenageada postumamente neste tributo que chegou à cidade do Rio de Janeiro (RJ) na noite de ontem, 29 de abril, dois dias após estrear em Porto Alegre (RS), terra natal de Calcanhotto.
No número inicial, a alusão à infância da menina baiana Maria da Graça Costa Penna Burgos (26 de setembro de 1945 – 9 de novembro de 2022), em Salvador (BA), deu a pista certeira da inteligência do show dirigido e roteirizado por Calcanhotto com Marcus Preto, diretor artístico dos últimos discos e shows de Gal. Era com panela dentro da cabeça que a menina Maria da Graça – já vislumbrando intuitivamente que um dia seria Gal – exercitava a voz e a respiração.
Cantora e compositora modernista, discípula das liberdades tropicalistas de Caetano Veloso, compositor-guia da trajetória de Gal, Calcanhotto soube escolher e preparar nesse panelão de dimensão nacional as iguarias servidas em tributo para paladares refinados.
Em cena, Calcanhotto se escorou no toque de banda de sonhos cuja formação – Fábio Sá (baixo), Limma (teclados), Pedro Sá (guitarra) e Vitor Cabral (bateria e percussões) – reproduziu a sonoridade contemporânea idealizada por Marcus Preto na fase final da carreira de Gal, inebriando a plateia ao fazer Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) deslizar em águas cada vez mais pesadas.
Adriana Calcanhotto canta ‘Dê um rolê’ de peito aberto na estreia carioca do show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’ na casa Vivo Rio
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
Ao longo de duas horas de show, Adriana Calcanhotto encadeou 25 músicas nos 24 números de roteiro que evocou o caráter transcendental da voz e do repertório da cantora homenageada.
Em show repleto de signos e símbolos da verdadeira baiana, a começar pelos lábios vermelhos expostos na cenografia de Omar Salomão, Calcanhotto cantou Baby (Caetano Veloso, 1968), atiçou a região aguda da voz para evocar o “cristal transparente” mencionado na letra de Caras e bocas (Caetano Veloso e Maria Bethânia, 1977), se esparramou na poltrona cenográfica para simular a preguiça de The laziest gal in town (Cole Porter, 1927) e, no arremate do show (antes do bis), puxou Bloco do prazer (Moraes Moreira e Fausto Nilo, 1979) em número que eletrizou o frevo – amplificado por Gal em gravação de 1982 – com o toque abaianado da guitarra de Davi Moraes.
“Cereja do sundae”, como caracterizou Calcanhotto ao comentar a participação exclusiva da apresentação carioca do show, Davi Moraes permaneceu em cena no bis para dar toque heavy à música Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), cantada por Calcanhotto de peito aberto para lembrar a tomada de posição de Gal ao dar voz ao rock-samba Brasil (George Israel, Nilo Romero e Cazuza, 1988) no show O sorriso do gato de Alice (1994), cujo figurino foi ecoado na roupa branca usada por Calcanhotto.
Em show transcorrido sem erros, Calcanhotto seguiu roteiro corajoso sem deixar de ser Calcanhotto ao encarar o repertório de Gal, se saindo bem no bolero Folhetim (Chico Buarque, 1978), na balada Nuvem negra (Djavan, 1993) – sagazmente alocada no roteiro ao lado da também depressiva canção Solitude (Duke Ellignton, Eddie DeLange e Irving Mills, 1934, em versão de Augusto de Campos, 1977) – e até no canto da guarânia Índia (José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero, 1928, em versão em português de José Fortuna, 1952).
À vontade em cena, a artista gaúcha se afinou com o tecladista Limma para cantar Volta (1957) do conterrâneo Lupicínio Rodrigues – ponto de contato entre as trajetórias de Gal e Calcanhotto, pois ambas fizeram shows com o repertório amargurado do compositor – e alterou verso intolerável do samba Meu nome é Gal (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969), trocando o “Não faz mal que ele não seja branco” da letra original por “Não faz mal que ele não seja santo”, três números antes de cair no samba-rock Quando você olha pra ela (Mallu Magalhães, 2015).
Adriana Calcanhotto simula preguiça ao cantar ‘The laziest gal in town’ no show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’ na casa Vivo Rio
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
Veículo para a exposição da potência da banda excepcional, o rock Quando (1976) foi a rigor gravado com a voz de Gilberto Gil – com Gal no vocal – no álbum Doces bárbaros (1976), mas teve a presença no roteiro justificada plenamente por ter autoria creditada à própria Gal em parceria com Gil e Caetano Veloso.
Samba-canção de Dorival Caymmi (1914 – 2008), Só louco (1955) exemplificou a afinidade interpretativa de Calcanhotto e Gal, cantoras que sempre interiorizaram emoções em vez de cair no melodrama e sujar as mãos com o sangue das canções.
E por falar em samba-canção, algo no arranjo de Tema de amor de Gabriela (Antonio Carlos Jobim, 1983) deslocou a música para o interior de uma boate carioca dos anos 1950, ainda que o toque modernista da guitarra de Pedro Sá puxasse o tema para os dias de hoje.
Em momento íntimo de voz e violão, Calcanhotto lembrou a Gal Gracinha dos anos 1960, ainda norteada pela bossa nova de João Gilberto (1931 – 2019), ao cantar Sim, foi você (Caetano Veloso, 1965) ao lado do banquinho em que Gal se sentou para fazer o emblemático show Fa-Tal – Gal a todo vapor (1971). Essa Gracinha tímida também reverberou no canto de Hoje (Moreno Veloso, 2005).
Momentaneamente dentro do trilho autoral, Calcanhotto cantou Livre do amor (2018) – balada adensada por Gal no álbum A pele do futuro (2018) e até então inédita na voz da autora – e Esquadros (1992), música (mal) gravada por Gal no álbum Aquele frevo axé (1998).
A gaita tocada por Calcanhotto ao fim do folk Negro amor (It’s all over now, baby blue, Bob Dylan, 1965, em versão em português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, 1977) reiterou que tudo foi pensado com apuro nesse show em que Calcanhotto mergulha nas águas do ijexá É d’oxum (Gerônimo e Vevé Calazans, 1995) em número aliciante introduzido pelo refrão de Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi, 1972).
Adriana Calcanhotto no momento de voz e violão em que evoca a Gracinha dos anos 1960 no show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
Sim, coisas sagradas permanecem. E, por isso mesmo, é preciso registrar para a posteridade esse tributo a Gal em que, contra todos os prognósticos pessimistas de quem detectou oportunismo na turnê que segue por mais cinco cidades do Brasil na primeira quinzena de maio, Calcanhotto apresenta um dos shows mais luminosos de carreira que, se contabilizados os shows feitos na Porto Alegre (RS) natal, já se aproxima dos 40 anos.
Combinando com sabedoria os múltiplos ingredientes do panelão de Gal Costa, Adriana Calcanhotto preparou banquete requintado para servir ao público saudoso da Gaúcha, apelido com que Gilberto Gil se referia carinhosamente à baiana imortal.
Adriana Calcanhotto canta 25 músicas no roteiro do show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
♪ Eis o roteiro seguido em 29 de abril de 2013 por Adriana Calcanhotto na estreia carioca do show da turnê Gal – Coisas sagradas permanecem na casa Vivo Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Recanto escuro (Caetano Veloso, 2011)
2. Baby (Caetano Veloso, 1968)
3. Meu nome é Gal (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969)
4. Caras e bocas (Caetano Veloso e Maria Bethânia, 1977)
5. Quando (Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, 1976)
6. Quando você olha pra ela (Malu Magalhães, 2015)
7. Folhetim (Chico Buarque, 1978)
8. Volta (Lupicínio Rodrigues, 1957)
9. Só louco (Dorival Caymmi, 1955)
10. Tema de amor de Gabriela (Antonio Carlos Jobim, 1983)
11. Nuvem negra (Djavan, 1993)
12. Solitude (Duke Ellignton, Eddie DeLange e Irving Mills, 1934, em versão de Augusto de Campos, 1977)
13. The laziest gal in town (Cole Porter, 1927)
14. Índia (José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero, 1928, em versão em português de José Fortuna, 1952)
15. Sim, foi você (Caetano Veloso, 1965)
16. Hoje (Moreno Veloso, 2005)
17. Livre do amor (Adriana Calcanhotto, 2018)
18. Esquadros (Adriana Calcanhotto, 1992)
19. Negro amor (It’s all over now, baby blue, Bob Dylan, 1965, em versão em português de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, 1977)
20. Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971)
21. Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi, 1972) /
22. É d’Oxum (Gerônimo e Vevé Calazans, 1985)
23. Bloco do prazer (Moraes Moreira e Fausto Nilo, 1979)
Bis:
24. Um dia de domingo (Michael Sullivan e Paulo Massadas, 1985)
25. Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971)
Adriana Calcanhotto com o guitarrista Davi Moraes na estreia carioca do show ‘Gal – Coisas sagradas permanecem’
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

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