Em show no Circo Voador, cantora prova conhecer bem o samba ao seguir roteiro surpreendente com músicas dos repertórios de Alcione, Beth Carvalho, Reinaldo, Jorge Aragão e Fundo de Quintal. Teresa Cristina na estreia nacional do show ‘Pagode, Preta’ no Circo Voador, na cidade do Rio de Janeiro
Larissa Lopes / Divulgação Produção Teresa Cristina
Resenha de show
Título: Pagode, Preta
Artista: Teresa Cristina
Local: Teatro Rival (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 2 de junho de 2023
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ Já era alta madrugada de sábado, 3 de junho, quando Teresa Cristina saiu do palco do Circo Voador – sem querer sair, como admitira diversas vezes – após fazer show caloroso que energizou o público que se abrigou sob a lona mais musical da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Quase ao fim do dia anterior, 2 de junho, a cantora carioca pisara naquele palco para fazer a estreia nacional do show Pagode, Preta com ingressos esgotados.
A apresentação foi recebida com entusiasmo pelo público – a ponto de ter sido estendida informalmente com números não ensaiados pela cantora com a banda, como Que se chama amor (José Fernando, 1993) – e confirmou o momento luminoso de Teresa Cristina, que vem de espetáculo de aura totalmente distinta, Teresinha – As canções que Bethânia me ensinou, mas igualmente quente.
Em Pagode, Preta, inexiste a teatralidade do recente show calcado no repertório de Maria Bethânia, cantora idolatrada por Teresa. Pagode, Preta chegou à cena como roda de samba que se insere na tendência atual de revival de pagodes dos anos 1980 e (sobretudo) da década de 1990.
Cantoras associadas ao samba vem fazendo bem-sucedidos shows nessa linha. A diferença é o já notório e diferenciado conhecimento de Teresa Cristina no assunto. Por ter nascido em 1968 e acompanhado o boom do pagode carioca nos anos 1980, a cantora pesca pérolas raras no baú, indo além do óbvio.
Que outra cantora entraria na roda para cantar Noite pelo dia (Arlindo Cruz e Adilson Victor, 1982), samba que promoveu nas rádios o álbum Vamos arrepiar! (1982), primeiro disco de Alcione na gravadora RCA? Pois Noite pelo dia apareceu com a devida empolgação no roteiro de Pagode, Preta! acompanhado de legítimo protesto de Teresa pela inexistência de cantoras cariocas de samba na escalação do time de intérpretes do show em tributo a Alcione realizado na quarta-feira, 31 de maio, na 30ª edição do Prêmio da Música Brasileira.
“Só o samba é capaz desse povo alegrar”, ratificou Teresa ao abrir o show com pura semente plantada no fundo do quintal, Seja sambista também (Arlindo Cruz e Sombrinha, 1984), faixa-título do quarto álbum do Fundo de Quintal, grupo que remodelou o samba carioca, amadrinhado por Beth Carvalho (1946 – 2019), referência na colheita de sementes e frutos dos quintais cariocas.
Não por acaso, Teresa saudou Beth logo no início e cantou sambas do repertório da artista – casos do sublime Além da razão (Sombra, Sombrinha e Luiz Carlos da Vila, 1988) e do pouco lembrado Sem ataque sem defesa (Sombra e Adilson Victor, 1989) – no começo de apresentação marcada pela alegria.
Teresa Cristina celebra Beth Carvalho (1946 – 2019) na estreia do show ‘Pagode, Preta’
Michele Castilho / Divulgação Circo Voador
Rodeada no palco por banda formada por mulheres pretas, o que deu tom ativista ao show, a cantora ainda recebeu Marina Iris, convidada a cantar Agora viu que perdeu e chora (Arlindo Cruz, Franco e Jorge David, 2002), sucesso de Reinaldo.
O repertório somente saiu da roda do samba quando Teresa trouxe o reggae No woman, no cry (Vincent Ford, 1974) – na versão em português escrita e lançada por Gilberto Gil em 1979 – para o pagode após cantar Desejo de amar (Gabu e Marinheiro, 1991), samba aliciante no qual o público quente do Circo Voador elevou ainda mais a voz para fazer coro com a cantora nesse sucesso de Eliana de Lima.
O êxito do show Pagode, Preta deve ser creditado tanto ao repertório infalível – quem consegue resistir ao molejo baiano do Samba pras moças (Roque Ferreira e Grazielle, 1995) e à cadência envolvente de Eu e você sempre (Jorge Aragão e Flávio Cardoso, 2000)? – quanto à evolução da cantora como intérprete.
Nesse sentido, Teresa progrediu muito, como reiterou ao realçar o desejo de vingança afetiva embutido nos versos de Falsa consideração (Eros Fidelis, Lieber e Marquinhos Sathan, 1986), espécie de Olhos nos olhos do pagode carioca que alicia o público desde que o samba foi lançado pelo cantor Marquinhos Sathan.
Termo que originalmente designava a festa animada com samba, pagode nomeou a produção fértil dos quintais cariocas dos anos 1980 e, na década seguinte, passou a significar o pagode com mais teclados de grupos paulistas como Raça Negra, de quem Teresa recriou Cheia de manias (Luiz Carlos, 1992) com todo o didididiê dessa banda que fez história nos anos 1990.
Sem preconceitos e sem perder o pique, Teresa Cristina irmanou os mais conhecidos partidos altos popularizados por Zeca Pagodinho em álbum de 1986 com hits do pagode da década de 1990 – casos de Eu e ela (Délcio Luiz e Ronaldo Barcellos, 1994) e Valeu demais (Leandro Lehart, 1995) – em roteiro sempre surpreendente que chegou a abarcar um outro samba do século XXI.
Com graus diferenciados de pureza melódica e qualidade poética (a geração do Fundo de Quintal paira soberana no ranking da produção feita após os anos 1970), as sementes colhidas por Teresa Cristina para o show Pagode, Preta são raízes da mesma árvore frondosa do samba feito no Rio de Janeiro e em São Paulo.
É que Teresa Cristina sabe que, como dizem os versos de Seja sambista também, “… o samba marca como um giz / É eterno porque é raiz”.
Teresa Cristina canta 29 músicas na estreia de ‘Pagode, Preta’ antes da ‘prorrogação’ do show
Michele Castilho / Divulgação Circo Voador
♪ Eis o roteiro oficial seguido na estreia nacional do show Pagode, Preta em 2 de junho de 2023 no Circo Voador, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Seja sambista também (Arlindo Cruz e Sombrinha, 1984)
2. Samba no quintal (Everaldo Cruz e Toninho Nascimento, 1979)
3. Além da razão (Sombra, Sombrinha e Luiz Carlos da Vila, 1988)
4. Sem ataque sem defesa (Sombra e Adilson Victor, 1989)
5. Trilha do amor (André Renato, Gilson Bernini e Xande de Pilares, 2012)
6. Ponta de dor (Jorge Aragão e Sombrinha, 1986)
7. Minha meu sonho (Jorge Aragão, 1989)
8. Sonhos (Jairo, Santaninha, Baby e Charlinho, 2000)
9. Desejo de amar (Gabu e Marinheiro, 1991)
10. No woman no cry (Vincent Ford, 1974, em versão em português de Gilberto Gil, 1979)
11. Noite pelo dia (Arlindo Cruz e Adilson Victor, 1982)
12. Sufoco (Chico da Silva e Antonio José, 1978)
13. Estranha loucura (Michael Sullivan e Paulo Massadas, 1987)
14. Agora viu que perdeu e chora (Arlindo Cruz, Franco e Jorge David, 2002) – com Marina Iris
15. Pura semente (Arlindo Cruz e Acyr Marques, 1987)
16. Falsa consideração (Eros Fidelis, Lieber e Marquinhos Sathan, 1986)
17. Eu e você sempre (Jorge Aragão e Flávio Cardoso, 2000)
18. Samba pras moças (Roque Ferreira e Grazielle, 1995)
19. Hei de guardar teu nome (Arlindo Cruz e Adilson Victor, 1986)
20. Vou te deixar no sereno (Beto Sem Braço e Jorginho Saberás, 1986)
21. A macumba da nega (Deni de Lima, 1986)
22. Brincadeira tem hora (Beto Sem Braço e Zeca Pagodinho, 1986)
23. Valeu demais (Leandro Lehart, 1995)
24. É tanta (Serginho Meriti e Cacá Franklin, 2000)
25. Cheia de manias (Luiz Carlos, 1992)
26. Eu e ela (Délcio Luiz e Ronaldo Barcellos, 1994)
27. Temporal (Leandro Lehart, 1996)
28. Lucidez (Jorge Aragão e Cleber Augusto, 1991)
Bis:
29. Domingo (Alexandre Pires e Fernando Pires, 1993)
Teresa Cristina energiza público carioca e confirma momento luminoso na estreia de ‘Pagode, Preta’
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