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Uma pousada que reservou lugar para mais hóspedes do que deveria e a subsequente decisão de alojar duas jovens turistas de São Paulo em outra região da cidade – numa acomodação com o estranho nome de Zeperri, no Campeche.
Foi por conta desse perrengue que a jornalista, professora, escritora e tradutora Mônica Cristina Corrêa mergulhou no rico e misterioso mundo dos pilotos franceses e de Antoine de Saint-Exupéry, o célebre aviador-escritor que teria feito de Florianópolis, por volta de 1930, uma das escalas do correio aéreo que ligava a Europa aos pontos mais meridionais do continente sul-americano.
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Escritora brasileira, Mônica Cristina Corrêa será premiada pelo governo francês – Foto: Divulgação/ND
“Aquele episódio mudou minha vida”, diz Mônica, que nesta segunda-feira (24) será condecorada com o grau de Oficial da Ordem Nacional do Mérito, conferido pelo governo da França em reconhecimento à sua “contribuição ativa para a promoção da cultura e da língua francesa no Brasil”. A solenidade será na sede da Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina), em Florianópolis, às 18h.
O documento informando sobre a homenagem é de autoria do embaixador da França no Brasil, Emmanuel Lenain. “É a segunda maior comenda da França, criada pelo presidente Charles de Gaulle em 1963”, destaca a jornalista.
Divulgação da história
Desde que foi com a irmã para a pousada batizada com o “nome” do autor de “O Pequeno Príncipe”, em 2005, Mônica conseguiu o que poucos brasileiros fizeram – tornar a memorável história dos aviões da Compagnie Générale Aéropostale mais conhecida no Brasil. Com seu interesse pelo tema, pesquisas e publicações, ela conquistou a confiança da Fondation Latécoère, da Succession Antoine de Saint-Exupéry e dos sobrinhos e demais parentes do escritor.
Escritor virou Zé Perri no Campeche
Foi por meio do dono da pousada Zeperri que Mônica Corrêa chegou a Getúlio Manoel Inácio, suboficial da Aeronáutica e filho do pescador Rafael Manoel Inácio, o Deca, que teria convivido por Saint-Exupéry na vila do Campeche, entre 1929 e 1931, no curto período em que o piloto e futuro escritor consagrado fez a rota aérea entre a América do Sul e a França.
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Escritora brasileira será condecorada pelo governo da França em reconhecimento à sua contribuição para promoção da cultura francesa no Brasil – Foto: Divulgação/ND
O primeiro fruto dessa parceria foi uma exposição com pôsteres da Aéropostale na pousada, em 2007. A família do filho de seu Deca, a princípio, resistiu a abrir o flanco para uma paulista com ares de intelectual que já convivia com a francofonia e via ali uma fonte para pesquisas e revelações surpreendentes.
“Na insistência, passei do portão para o quintal e depois para a sala da casa dele”, conta a jornalista e tradutora. “Disse à família que poderia tornar essa história conhecida fora de Santa Catarina e do país. Aquela descoberta mexeu comigo, era a pérola do que eu vinha estudando”.
Em 2007, depois de passar duas semanas com a mãe em Florianópolis, conhecendo todas as praias possíveis e recantos da cidade, Mônica decidiu que era hora de largar a carreira de professora em São Paulo para viver perto do local onde pousavam os aviadores franceses. Foi quando o dono da pousada Zeperri decidiu mexer na casa e abrir espaço para uma exposição permanente com banners enviados da França por Isabelle d’Agay, uma das sobrinhas-netas de Antoine de Saint-Exupéry.
A exposição tinha visitas guiadas e o tema foi ganhando as escolas e conquistando o interesse de mais pessoas na cidade. Paralelamente, Mônica conseguiu uma bolsa da Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina) para reformar o Espaço Zé Perri, o casarão do Campeche que dava guarida aos pilotos franceses. A mudança definitiva da jornalista para Florianópolis foi em 2008, numa época em que o Sul da Ilha ainda não havia sido atingido pela expansão imobiliária e pelo caos de mobilidade dos dias de hoje.
Amizade com pescadores
Em Florianópolis, as operações da Aéropostale e a amizade de Saint-Exupéry com os pescadores sempre foram assuntos correntes, oscilando entre a convicção e a lenda.
No documentário “De Saint-Exupéry e Zeperri”, dirigido por Branca Regina Rosa, o jornalista Sérgio da Costa Ramos, o empresário João Eduardo Amaral Moritz e o publicitário Emílio Cerri falam desse tema com desenvoltura e a certeza de que as palavras dos pescadores são provas suficientes da presença do escritor no galpão da Aéropostale, nas pescarias, nas tertúlias e nos jantares com peixe e pirão d’água do Campeche.
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Amizade com pescadores é tema de livro da escritora – Foto: Divulgação/ND
A cidade era uma das 11 escalas da empresa francesa no Brasil, num roteiro que incluía Pelotas, Porto Alegre, Santos, Rio de Janeiro e Recife, entre outras.
Cerri cita Admar Gonzaga, empresário de longos serviços prestados a Florianópolis, que quando jovem foi designado pelos Correios e Telégrafos para buscar, a cavalo, as malas postais que chegavam no campo do Sul da Ilha.
Amaral Moritz lembra do pai, o engenheiro João Eduardo Moritz, que morreu em 2010, cujo estabelecimento comercial fornecia mantimentos para os pilotos que dormiam e esperavam pelos voos no Campeche. Numa antiga gravação, seu pai contou que, em uma dessas incursões, Saint-Exupéry levou-o ao hangar e mostrou o avião que operava, chegando a colocá-lo dentro do aparelho.
Além de enfrentar resistências porque veio de fora, Mônica Corrêa também teve detratores que se empenharam em negar, com base na falta de provas físicas e documentais, a passagem de Saint-Exupéry por Florianópolis.
A citação da cidade no livro “Voo Noturno”, publicado em 1931, quando o aviador chefiava a Aéropostale em Buenos Aires, não seria suficiente para cravar que ele aterrissou aqui em algum momento das operações do correio aéreo. “Nunca duvidei da presença dele e das amizades que fez com os pescadores”, diz a jornalista.
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Mônica cita Florianópolis em seus livros – Foto: Livro-Monica
O documentário de 2011 traz depoimentos de Jean d’Agay, sobrinho de Saint-Exupéry, François d’Agay, sobrinho e afilhado que esteve em Florianópolis e conversou com Getúlio Manoel Inácio, Max Armanet, jornalista, piloto e especialista em história da aviação, e Isabelle d’Agay, sobrinha-neta do escritor, além de Francisca Paulina Inácio, a dona Chica, mulher de seu Deca.
Nenhuma dessas pessoas coloca em dúvida as relações de amizade de Exupéry com os nativos. Apenas Armando Gonzaga, filho de Admar Gonzaga, suspeita que outros aviadores, e não propriamente Exupéry, circularam pela região, pelas praias e eventualmente pelas ruas do Centro da Capital.
Livros, reportagens e documentários da escritora brasileira
Fluente em francês, Mônica publicou livros e reportagens, organizou exposições, criou projetos e participou de documentários que ajudaram a difundir as façanhas dos heroicos homens do ar que construíram a gênese da aviação no mundo. Atualmente, ela preside a Amab (Associação Memória da Aéropostale no Brasil).
Nesse período, também traduziu obras da romancista e memorialista francesa George Sand (1804-1876), do escritor André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) e do filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017), entre outros autores.
Com doutorado e pós-doutorado nas áreas da língua e da literatura francesas pela USP (Universidade de São Paulo), já fez conferências na Sorbonne e levou a Toulouse, berço da Latécoère (depois Aéropostale, depois Air France), o documentário “De Saint-Exupéry a Zeperri”, de 2011.
Além de “O Pequeno Príncipe”, traduziu para o português “Piloto de Guerra”, livro que Exupéry publicou dois anos antes de sua morte, em 1944.
“Aventureiro de si mesmo”
Mônica Corrêa é uma entusiasta da história dos aviadores franceses e pode ficar horas falando sobre a loucura de Pierre-Georges Latécoère, um dos pioneiros da aeronáutica, determinado a “realizar o irrealizável”, as incursões do correio aéreo para a África e as viagens transatlânticas para o Brasil e a Argentina.
Eram tempos de pouca tecnologia, ausência de instrumentos de navegação e campos de pouso improvisados. Aquela ousadia da empresa francesa e de seus pilotos, que desafiavam ventos contrários, tempestades e sucessivas panes nos motores, sempre impressionou o mundo, mas foi uma escola para a aviação, que um século depois tornou quase nulas as distâncias entre países e continentes.
Por razões óbvias, a estrela da companhia é Antoine de Saint-Exupéry, que tirou o brevê de piloto civil aos 21 anos e que o jornalista Sérgio da Costa Ramos chama de “aventureiro de si mesmo”.
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Escritora brasileira divulga cultura francesa em seus livros – Foto: Divulgação/ND
Abatido por um piloto alemão no final da segunda guerra, enquanto fazia um voo de reconhecimento no mar Mediterrâneo, o “poeta da aviação” era um humanista que ao lado de heróis como Jean Mermoz, Henri Guillaumet, Paul Vachet e muitos outros desbravou os céus e nas horas vagas produziu esboços para os livros que depois legou ao mundo.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, o que Mônica Corrêa anseia é ver o casarão do Campeche “receber o tratamento que merece”, interagindo com a comunidade e fazendo justiça à importância desse local na história da aviação civil. “Os franceses sempre foram muito bem recebidos pelos manezinhos”, diz ela. “É importante deixar algo disso para as próximas gerações”.